segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A consciência de Svevo, de Italo Svevo

Editora: Clube de Literatura Clássica

ISBN: 978-65-870-3680-9

Tradução: Veríssimo Anagnostopoulos e Gabriela Maroha Anagnostopoulos

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 80

Sinopse: Livreto com dois contos de Italo Svevo – “Orazio Cima” e “A Novela do Bom Velho e da Bela Moça”.



“As crianças amam gritar quando correm.”

 

 

“Quando um autêntico jovem se enamora, o seu amor amiúde provoca no seu cérebro reações que em breve com o seu desejo não têm nada que ver. Quantos jovens que poderiam sossegar-se ditosamente numa cama hospitaleira, não viram de pernas para o ar ao menos suas casas crendo que para ir para a cama com uma mulher cumpra primeiro conquistar, criar ou destruir. Já os velhos, de quem se diz que são mais bem protegidos das paixões, se lhe abandonam em plena consciência e entram na cama da culpa só com devido resguardo aos resfriados.”

 

 

“Depois o velho pensou que era o olho infantil da jovenzinha que o conquistara. Os velhos quando amam passam sempre pela paternidade e todo abraço seu é um incesto do qual tem o acre sabor.”

 

 

“Os jovens depois de um pouco de experiência ou mesmo antes de ter nenhuma encontram tudo aquilo de que precisam enquanto o velho é um amador desorganizado. À máquina de fazer amor falta neles ao menos um parafuso.”

 

 

“Geralmente é certo que a maior parte dos velhos acredita ter muito direitos e somente direitos.”

 

 

“Se o velho pudesse se comportar segundo seu desejo, teria logo despedido a jovenzinha porque os velhos têm a imoralidade passageira. Mas com uma mulher que ama não se pode de modo algum proceder assim a toque de caixa.”

 

 

“Má retórico aquele que se arrima em tantos argumentos.”

 

 

“Pode-se nisso ver como funcionam regularmente os velhos. Nos jovens cada hora é desordenadamente ocupada pelos sentimentos mais díspares enquanto nos velhos cada sentimento tem a sua hora, inteira. A jovenzinha caminhava de mãos dadas com o velho. Quando a queria, vinha; ia-se quanto não a queria mais. Discutiam! Depois faziam amor e comiam de boníssimo humor.”

 

 

“— Se o desejas — disse ao velho — eu te arrumo uma obra com o título: O velho. A velhice, infelizmente, ali é considerada uma doença. Não de longa duração, porém.”

 

 

“Com efeito, toda obra que pretende criar uma teoria se divide em duas partes. A primeira se dedica à destruição das teorias pré-existentes ou, melhor ainda, à crítica do estado de fato existente, enquanto a segunda tem a difícil tarefa de reconstruir as coisas sobre novas bases; coisa bastante difícil.”

 

 

“Nada de mais belo e de mais fluido que o prefácio a uma teoria.”

 

 

“Outra vez pensou descrever como desde a primeira classe elementar se devia lembrar que o objetivo da vida é vir a ser um velho são. A juventude quando peca não sofre e não faz sofrer tanto. Já o pecado do velho é mais ou menos equivalente a dois pecados do jovem.”

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Fé e saber, de Jürgen Habermas

Editora: Unesp

ISBN: 978-85-393-0403-5

Tradução: Fernando Costa Mattos

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 88

Sinopse: Segundo volume da Coleção Habermas, este texto reproduz um discurso do filósofo proferido aproximadamente um mês depois do 11 de setembro de 2001. Embora circunstancial, é de grande importância no conjunto da obra do filósofo que, ao retomar o clássico tema fé e saber, adota uma nova expressão — “pós-secular” — imprimindo mudanças em sua teoria da modernidade, presente em suas obras posteriores.



“Apesar de sua pequena dimensão e seu caráter circunstancial, Fé e Saber ocupa lugar de destaque na vasta e complexa obra de Habermas. O texto reproduz o discurso pronunciado na recepção do Prêmio da Paz concedido pela Associação dos Comerciantes de Livros da Alemanha, cerca de um mês após o acontecimento histórico de 11 de Setembro de 2001. Ocasião propícia para mais uma vez traçar um panorama intelectual de época, exercitando a mediação interpretadora típica da filosofia e, como se poderia esperar, colocando à prova seu próprio pensamento. O diagnóstico de Habermas tem como mira principal o tempo nascente de um novo milênio cuja situação cultural exibiria duas tendências contrárias: de um lado, a propagação de imagens de mundo naturalistas; e, de outro, a revitalização inesperada de comunidades de fé e tradições religiosas e sua politização em escala mundial. Não chega a ser surpreendente, portanto, que o presente ensaio conclua com o exemplo da engenharia genética para ilustrar a atitude correta de uma filosofia racional e profana que, guardando distância da religião, não se fecha às suas perspectivas. A diferença absoluta entre o criador que dá forma à criatura, atribuindo-lhe ao mesmo tempo a capacidade de autodeterminação — de acordo com o relato bíblico do Gênesis, “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou” —, exprime bem a autocompreensão normativa de uma responsabilidade simétrica entre pessoas livres e iguais e serve de inspiração para uma moralidade política baseada na ideia de dignidade humana.” (Luiz Bernardo Leite Araujo — Apresentação)

 

 

No texto que se segue Habermas fala de uma modernidade com cabeça de Jano e de uma secularização dominada por sentimentos ambivalentes. Com isso ele pretende chamar a atenção para a dialética inconclusa de um movimento histórico cuja autocompreensão é resultado de processos de aprendizagem. Permanecendo aferrado à constelação pós-metafísica e secular do pensamento moderno, Habermas propõe uma reavaliação da tese tradicional da secularização com vistas a um questionamento do secularismo como visão de mundo. Não resta dúvida de que a laicização da autoridade política é a viga mestra do processo de secularização, do qual fazem parte a separação entre igreja e Estado, a instauração do pluralismo religioso e a adoção do regime de tolerância mútua entre credos e doutrinas divergentes. Mas a derrocada da unidade substancial das sociedades tradicionais em torno das interpretações míticas e das imagens religiosas e metafísicas de mundo — no seio das sociedades modernas desprovidas de garantias metassociais, funcionalmente diferenciadas e culturalmente heterogêneas — não quer dizer que a “destruição criadora” do processo de secularização equivalha a um “jogo de soma zero” entre poderes mundano e supramundano. E tampouco indica que o “impulso reflexivo” na direção do descentramento e da autonomização das perspectivas de mundo passe ao largo da “profanação do sagrado”, urdida inicialmente pelas grandes religiões surgidas na China, na Índia e em Israel — o chamado “período axial” de Karl Jaspers, quando também teve origem a filosofia na Grécia — em meados do primeiro milênio antes de Cristo.

Isso mostra que o pensamento pós-metafísico, que estabelece uma distinção rigorosa entre fé e saber, não se limita ao legado da metafísica ocidental, mas considera as doutrinas religiosas como integrantes da genealogia da razão, nutrindo-se de seu conteúdo normativo. A expressão “pós-secular” não é uma alternativa ao horizonte pós-metafísico da modernidade, o qual permanece “secular” a despeito daquele prefixo “pós”, correspondendo a uma mudança de mentalidade ou a uma alteração crítica do autoentendimento secularista de sociedades que se tornaram conscientes da persistência da religião, de sua relevante contribuição para a vida política, da necessidade de eliminar sobrecargas mentais e psicológicas desmesuradas para os cidadãos crentes, e ainda do imperativo de acomodação das vozes religiosas na esfera pública democrática. A “tradução cooperativa de conteúdos religiosos”, defendida por Habermas em Fé e saber, remete a uma ética da cidadania cuja realização depende de enfoques epistêmicos mediante os quais as dissonâncias cognitivas sejam tratadas como desacordos razoáveis entre todas as partes engajadas em processos de aprendizagem complementares. Se sobre o cidadão de fé recai a exigência de uma consciência reflexiva que relacione suas convicções com o fato do pluralismo, deixe às ciências institucionalizadas as decisões referentes ao saber mundano e torne as premissas igualitárias de uma moral universalista dos direitos humanos compatíveis com seu credo; o cidadão secular assume, por seu turno, as pressões adaptativas da situação pós-secular, na qual se atualiza a questão kantiana de como assimilar a herança semântica das tradições religiosas sem obliterar a fronteira entre os universos da fé e do saber.

Ressalta-se aqui o exemplo de “uma desconstrução ao mesmo tempo secularizante e salvadora das verdades de fé”. Para Habermas, o pensamento pós-metafísico deve adotar uma atitude simultaneamente agnóstica e receptiva diante da religião, ou seja, que se oponha a uma determinação estritamente secularista das razões publicamente aceitáveis sem, com isso, comprometer sua autocompreensão secular. É uma opção metodológica cogente para um tipo de pensamento que, lidando com a força especial das tradições religiosas no trato de intuições morais profundas e na articulação daquilo que falta ou que se perdeu, não pretende despi-las de possíveis conteúdos racionais, nem desvalorizá-las como resíduos arcaicos de uma figura do espírito superada pelas ciências, mas ainda assim insiste nas diferenças cruciais entre a fé e o saber como modalidades essencialmente distintas do ter algo por verdadeiro. Nesse sentido, a história do cristianismo é particularmente rica na ilustração desse trabalho conflituoso de apropriação racional e transformadora dos conteúdos religiosos veiculados pelas comunidades de crentes, sendo impensável a modernidade ocidental sem a dupla herança da espiritualidade judaico-cristã e da racionalidade grega, isto é, sem a permanente e produtiva relação de tensão entre a (religiosa) de Jerusalém e o saber (filosófico) de Atenas.”

(Luiz Bernardo Leite Araujo — Apresentação)

 

 

“Apesar de sua linguagem religiosa, o fundamentalismo é um fenômeno exclusivamente moderno. O que chama particularmente a atenção nos terroristas islâmicos é a assincronia entre os motivos e os meios. Reflete-se nisso a assincronia entre cultura e sociedade nos países natais desses terroristas, algo que só se constitui em decorrência de uma modernização acelerada e fortemente desenraizadora. Aquilo que em condições mais favoráveis poderia ser vivido, entre nós, como um processo de destruição criadora, não oferece por lá qualquer compensação perceptível para a dor que acompanha o declínio das formas de vida tradicional. Nesses países, a perspectiva de uma melhoria das condições materiais de vida é apenas uma perspectiva. O mais decisivo é que se bloqueia, por meio dos sentimentos de degradação, a transformação espiritual que se expressaria politicamente na separação entre religião e Estado. Também na Europa, que a história levou séculos para tornar sensível à cabeça de Jano da modernidade, a “secularização” continua a ser dominada por sentimentos ambivalentes — como se percebe na disputa em torno da engenharia genética.

Há ortodoxias endurecidas tanto no Ocidente como no Oriente Médio e no Extremo Oriente; entre cristãos e judeus, como entre muçulmanos. Quem quer evitar uma guerra de culturas precisa ter em mente a dialética inconclusa do nosso próprio processo ocidental de secularização. A “guerra contra o terror” não é uma guerra, e no terrorismo também se expressa um choque desastrosamente silencioso de dois mundos que precisariam desenvolver uma linguagem comum, para além da violência muda dos terroristas e dos mísseis. Em vista de uma globalização imposta por meio de mercados sem limites, muitos de nós têm a esperança de um retorno do político sob outra forma — não a forma hobbesiana original de um Estado de segurança globalizado, ou seja, com dimensões de polícia, serviço secreto e forças militares, mas a de um poder mundial de configuração civilizadora. No momento não nos resta muito mais do que a pálida esperança em alguma astúcia da razão — e um pouco de autorreflexão. Pois aquela ruptura muda cinde também a nossa própria casa. Nós só conseguiremos aferir adequadamente os riscos de uma secularização que saiu dos trilhos em outros lugares, se tivermos claro o que significa a secularização em nossas sociedades pós-seculares.”

 

 

Secularização na sociedade pós-secular

A palavra “secularização” teve, a princípio, o significado jurídico de uma transferência compulsória dos bens da Igreja para o poder público secular. Esse significado foi transmutado para o surgimento da modernidade cultural e social como um todo. Desde então, apreciações opostas têm sido associadas à “secularização”, conforme se coloque em primeiro plano ora a bem sucedida domesticação da autoridade eclesiástica pelo poder mundano, ora o ato de apropriação ilícita. De acordo com primeira leitura, modos de pensar e formas de vida religiosas são substituídos por equivalentes racionais, em todo caso superiores; de acordo com a outra leitura, as formas modernas de vida e pensamento são desacreditadas como bens furtados ilegitimamente. O modelo da substituição sugere uma interpretação otimista e progressista para uma modernidade desencantada; o modelo da apropriação forçada, uma interpretação teórica para o que seria a ruína de uma modernidade desamparada. As duas explicações cometem o mesmo erro. Elas consideram a secularização um jogo de soma zero entre, de um lado, as forças produtivas da ciência e da técnica, liberadas pelo capitalismo e, de outro, os poderes conservadores da religião e da Igreja. Um só pode ganhar à custa do outro, e isto segundo as regras liberais de um jogo que favorece as forças motrizes da modernidade.

Essa imagem não é adequada a uma sociedade pós­secular que se ajusta à sobrevivência de comunidades religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante. Não é levado em conta o papel civilizador de um senso comum [Commonsense] democraticamente esclarecido que, em meio aos ânimos exacerbados da luta cultural, funciona como um terceiro partido, pavimentando seu próprio caminho entre a ciência e a religião. É certo que, do ponto de vista do Estado liberal, só merecem o predicado “razoáveis” as comunidades religiosas que, segundo seu próprio discernimento, renunciam à imposição violenta de suas verdades de fé, à pressão militante sobre as consciências de seus próprios membros, e tanto mais à manipulação para atentados suicidas1. Esse discernimento se deve a uma tríplice reflexão dos fiéis sobre a sua posição em uma sociedade pluralista. Primeiramente, a consciência religiosa tem de assimilar o encontro cognitivamente dissonante com outras confissões e religiões. Em segundo lugar, ela tem de adaptar-se à autoridade das ciências, que detêm o monopólio social do saber mundano. Por fim, ela tem de adequar-se às premissas do Estado constitucional, que se fundam em uma moral profana. Sem esse impulso reflexivo, os monoteísmos acabam por desenvolver um potencial destrutivo em sociedades impiedosamente modernizadas. A expressão “impulso reflexivo” [Reflexionsschub] dá a falsa impressão de um processo concluído e realizado unilateralmente. Na verdade, porém, esse trabalho reflexivo dá um novo passo a cada conflito que irrompe nos campos de batalha da esfera pública democrática.”

1 Rawls, Politischer Liberalismus, p. 132-141; Forst, Toleranz, Gerechtigkeit, Vernunft, p. 144-161.

 

 

“É claro que o senso comum, que produz tantas ilusões sobre o mundo, tem de ser esclarecido sem reservas pelas ciências. Mas as teorias científicas que penetram o mundo da vida deixam intacto, em seu cerne, o quadro do nosso saber cotidiano, no qual se constitui a autocompreensão de pessoas capazes de falar e agir. Quando aprendemos algo novo sobre o mundo, e sobre nós como seres no mundo, modifica­se o conteúdo de nossa autocompreensão. Copérnico e Darwin revolucionaram a imagem geocêntrica e antropocêntrica do mundo. Mas a destruição da ilusão astronômica sobre a órbita das estrelas deixou menos sinais no mundo da vida que o fim da ilusão biológica sobre o lugar do homem na história natural. Os conhecimentos científicos parecem inquietar tanto mais nossa autocompreensão, quanto mais próximos eles nos deixam diante do nosso próprio corpo.”

 

 

“O senso comum está entrelaçado, portanto, com a consciência de pessoas que podem tomar iniciativas, cometer erros e corrigi-los. Em oposição às ciências, ele afirma a sua estrutura perspectivística de maneira muito própria. Por outro lado, essa mesma consciência de autonomia, que não é compreensível de forma naturalista, funda a distância em relação a uma tradição religiosa de cujos conteúdos normativos, contudo, também nos nutrimos. Com a exigência de justificativas racionais, o esclarecimento científico parece, por seu turno, trazer para o seu lado um senso comum que firmou seu lugar no edifício — construído segundo o direito racional — do Estado constitucional democrático. Evidentemente, também o direito racional igualitário tem raízes religiosas — raízes naquela revolução do modo de pensar que coincide com a ascensão das grandes religiões mundiais. Mas essa legitimação do direito e da política nos termos do direito racional se alimenta de fontes da tradição religiosa há muito tempo profanadas. Ao contrário da religião, o senso comum democraticamente esclarecido mantém-se sobre bases que são aceitáveis não somente para os membros de uma comunidade religiosa. É por isso que o Estado liberal continua a despertar a suspeita, entre os fiéis, de que a secularização ocidental possa ser uma via de mão única em que a religião será marginalizada.

A liberdade religiosa tem como contrapartida, de fato, uma pacificação do pluralismo das visões de mundo cujos custos se mostraram desiguais. Até aqui, o Estado liberal só exige dos que são crentes entre seus cidadãos que dividam a sua identidade, por assim dizer, em seus aspectos públicos e privados. São eles que têm de traduzir as suas convicções religiosas para uma linguagem secular antes de tentar, com seus argumentos, obter o consentimento das maiorias. É assim que, quando querem reclamar o estatuto de portador de direitos fundamentais para os óvulos fecundados fora do corpo materno, os católicos e protestantes procuram hoje (talvez prematuramente) traduzir a imagem e semelhança a Deus da criatura humana para a linguagem secular do direito constitucional. Mas a procura por argumentos voltados à aceitabilidade universal só não levará a religião a ser injustamente excluída da esfera pública, e a sociedade secular só não será privada de importantes recursos para a criação de sentido, caso o lado secular se mantenha sensível para a força de articulação das linguagens religiosas. Os limites entre os argumentos seculares e religiosos são inevitavelmente fluidos. Logo, o estabelecimento da fronteira controversa deve ser compreendido como uma tarefa cooperativa em que se exija dos dois lados aceitar também a perspectiva do outro.”

 

 

“A política liberal não deve externalizar o persistente conflito sobre a autocompreensão secular da sociedade, ou seja, deslocando-o para a cabeça dos religiosos. O senso comum democraticamente esclarecido não é algo singular, mas algo que descreve a constituição mental de uma esfera pública com muitas vozes. As maiorias seculares não devem chegar a conclusões, em questões desse tipo, antes de dar ouvidos à objeção dos oponentes que se sentem lesados em suas convicções religiosas; elas devem considerar essa objeção como uma espécie de veto suspensivo e verificar o que podem aprender com isso. No que diz respeito à origem religiosa de seus fundamentos morais, o Estado liberal deveria contar com a possibilidade de que, diante de desafios inteiramente novos, a “cultura do comum entendimento humano” (Hegel) possa não alcançar o nível de articulação da história de seu próprio surgimento. A linguagem do mercado penetra hoje todos os poros, forçando todas as relações entre seres humanos a encaixar-se no esquema de uma orientação autorreferente de acordo com as próprias preferências. No entanto, o vínculo social que se prende ao reconhecimento recíproco não se ajusta aos conceitos do contrato, da escolha racional e da maximização da utilidade.8

Por isso Kant não queria deixar o dever categórico desaparecer sob a onda do interesse autoesclarecido. Ele ampliou a liberdade de arbítrio de modo a abarcar a autonomia e, com isso, forneceu o primeiro grande exemplo — após a metafísica — de uma desconstrução ao mesmo tempo secularizante e salvadora das verdades de fé. A autoridade dos mandamentos divinos tem um eco na validade incondicional dos deveres morais que não podemos deixar de escutar. Com o seu conceito de autonomia, Kant certamente destrói a representação tradicional da nossa filiação divina.9 Mas ele só percebeu as consequências mais banais dessa deflação esvaziante através de uma apropriação do conteúdo religioso. Sua tentativa de traduzir o mal radical da linguagem bíblica para a linguagem da religião racional pode parecer-nos pouco convincente. Tal como mostra hoje, uma vez mais, o uso desenfreado dessa herança bíblica, nós ainda não dispomos de um conceito apropriado para a diferença semântica entre o moralmente incorreto e o profundamente mal. Não existe o demônio, mas o anjo caído segue seu curso calamitoso — seja nos bens invertidos da ação monstruosa, seja também no incontornável ímpeto de vingança que o segue de perto.”

8 Honneth, Kampf um Anerkennung.

9 O prefácio à primeira edição de A religião nos limites da simples razão começa com a frase: “Na medida em que está fundada no conceito do ser humano como um ser livre que, justamente por isso, prende-se a si mesmo, através de sua razão, em limites incondicionados, a moral não precisa nem da ideia de um outro ser sobre ele, para reconhecer seus deveres, nem de um outro motivo que não a própria lei”. (Kant, Die Religion..., p.649.)

 

 

A história da filosofia alemã desde Kant pode ser compreendida como um processo judicial em que são tratadas essas questões de partilha da herança. A helenização do cristianismo havia conduzido a uma simbiose entre a religião e a metafísica, Kant volta a separá-las. Ele traça um limite preciso entre a fé moral da religião raciona e a fé revelada positiva, que teria conduzido a um melhoramento da alma, mas, “com seus amuletos, estatutos e prescrições”, teria acabado por tornar-se “uma amarra”.10 Para Hegel, isso é puro “dogmatismo do Esclarecimento”. Ele zomba da vitória de Pirro de uma razão que, como os bárbaros vencedores que se subordinam ao espírito da nação vencida, só mantém “a supremacia no que diz respeito à dominação exterior”.11 No lugar de uma razão que traça limites, aparece uma razão que toma para si. Hegel faz da morte do filho de Deus na cruz o centro de um pensamento que quer incorporar o conteúdo positivo do cristianismo. O tornar-se homem de Deus simboliza a vida do espírito filosófico. Também o Absoluto tem de externalizar-se no outro de si mesmo, pois ele só tem a experiência de si como poder absoluto quando se reelabora a partir da dolorosa negatividade da autolimitação. Assim, com efeito, os conteúdos religiosos são  superados na forma do conceito filosófico. Mas Hegel sacrifica a dimensão histórica de salvação do futuro em nome de um processo do mundo que gira em torno de si mesmo.

Os discípulos de Hegel rompem com o fatalismo dessa desesperadora antevisão de um eterno retorno do mesmo. Eles não querem mais superar a religião no pensamento, mas sim realizar os seus conteúdos profanados através do esforço solidário. Esse pathos de uma efetivação dessublimadora do reino de Deus na Terra move a crítica à religião desde Feuerbach e Marx até Bloch, Benjamin e Adorno: “Nenhum conteúdo teológico permanecerá sem modificação; todos terão de passar pela prova e transformar-se em conteúdos seculares, profanos”.12 Nesse meio tempo, o curso da história havia tratado de mostrar que a razão se vê sobrecarregada com esse projeto. Na medida em que, com isso, a razão acaba por desesperar-se consigo mesma, Adorno se socorreu, mesmo que para fins estritamente metodológicos, do ponto de vista messiânico: “a única luz que o conhecimento possui é aquela que a redenção faz brilhar sobre o mundo”.13 A esse Adorno se aplica a frase que Horkheimer cunhou para a teoria crítica como um todo: “Ela sabe que Deus não existe, mas ainda assim acredita nele”.14 Sob outras premissas, Jacques Derrida (também deste ponto de vista um merecido ganhador do Prêmio Adorno) adota hoje uma posição semelhante. Ele só quer conservar do messianismo “o mais mínimo elemento messiânico, que tem de estar despido de tudo”.15

Evidentemente, a região limítrofe entre a filosofia e a religião é um terreno minado. Uma razão que desmente a si mesma cai facilmente na tentação de simplesmente tomar para si a autoridade e o gesto de um sagrado desessencializado, tornado anônimo.”

12 Adorno, Vernunft und Offenbarung, p.20.

13 Adorno, Minima Moralia, p.480.

14 Horkheimer, Gesammelte Schriften, v.14, p.508.

15 Derrida, Glauben und Wissen, p.33; cf. também Derrida, Den Tod Geben.

  

 

“Na controvérsia sobre como lidar com os embriões humanos, por exemplo, muitas vozes se remetem a Moisés I,27: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou”. Não é preciso acreditar que Deus, que é amor, atribui a Adão e Eva um ser livre semelhante ao seu, para compreender o que significa algo ser criado à imagem de algo. O amor não pode existir sem o reconhecer-se em um outro, a liberdade não pode existir sem o reconhecimento recíproco.”

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Fundação (03): Segunda Fundação, de Isaac Asimov

Editora: Aleph

ISBN: 978-85-7657-197-1

Tradução: Fábio Fernandes

Opinião: ★★☆☆

Páginas: 301

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Sinopse: Ver Primeiro livro



“O homem que não tinha outro nome a não ser Mulo e nenhum título a não ser Primeiro Cidadão olhava, através das paredes que eram como espelhos de face única, para a cidade brilhante e nobre no horizonte.

No fim de tarde, as estrelas surgiam e não havia nenhuma que não devesse obediência.

Ele sorriu com uma amargura fugaz, perante o pensamento. Elas deviam obediência a uma personalidade que poucos haviam visto.

Ele não era um homem para ser contemplado, o Mulo – não era um homem para ser contemplado sem desdém. Pouco mais de 50 quilos esticados em 1,70 m. Seus membros eram como pequenos caules ossudos que saíam de seu corpo esquelético em ângulos pouco graciosos. E seu rosto magro estava quase tomado pela proeminência de um bico carnudo que se projetava, chegando a sete centímetros.

Somente seus olhos desmentiam a comédia geral que era o Mulo. Na suavidade – algo estranho de se encontrar no maior conquistador da Galáxia – de seus olhos, a tristeza nunca estava de todo apagada.

Na cidade, encontrava-se toda a alegria de uma capital luxuosa de um mundo luxuoso. Ele poderia ter estabelecido sua capital na Fundação, o mais forte entre todos os seus inimigos conquistados, mas ela estava muito longe, na borda da Galáxia. Kalgan, mais centralmente localizada, com uma longa tradição de parque de diversões da aristocracia, servia melhor – estrategicamente.

Mas, em sua tradicional alegria, aumentada por uma prosperidade nunca antes vista, ele não encontrava paz.

Eles o temiam, obedeciam e, talvez, até respeitassem – de uma boa distância. Mas quem poderia olhar para ele sem desdém? Somente os que tinham sido convertidos. E de que valia essa lealdade artificial? Não tinha sabor. Ele poderia ter adotado títulos, imposto um ritual e inventado elaborações, mas mesmo isso não teria mudado nada. Melhor – ou menos pior – ser simplesmente o Primeiro Cidadão – e se esconder.

Houve uma repentina onda de rebelião dentro dele – forte e brutal. Nenhuma porção da Galáxia deveria ser negada a ele. Por cinco anos, permanecera silencioso e enterrado aqui em Kalgan por causa da ameaça eterna, mística, espalhada pelo espaço da nunca vista, nunca ouvida, nunca conhecida Segunda Fundação. Ele tinha trinta e dois anos. Não era velho – mas se sentia velho. Seu corpo, quaisquer que fossem seus poderes mentais mutantes, era fisicamente fraco.

Todas as estrelas! Todas as estrelas que ele podia ver – e todas as estrelas que não conseguia ver. Tudo devia ser dele!

Vingança contra todos. Contra uma humanidade da qual não fazia parte. Contra uma Galáxia onde não se encaixava.”

 

 

“– Onde a história se preocupa principalmente com as personalidades, os esboços podem ser tanto positivos quanto negativos, de acordo com os interesses do escritor.”

 

 

“– Um Orador deve ser capaz de discutir o Plano sem matemática. Se não o Plano em si, pelo menos sua filosofia e seus objetivos. Primeiro de tudo, qual é o objetivo do Plano? Por favor, diga-me em suas próprias palavras... e não fique procurando lindas palavras. Você não será julgado por polidez e suavidade, eu garanto.

Foi a primeira chance do Estudante de dizer mais de uma sentença, e ele hesitou antes de mergulhar no espaço cheio de expectativas que se abriu à sua frente. Começou a falar, com modéstia:

– Como resultado do que aprendi, acredito que é a intenção do Plano estabelecer uma civilização humana baseada em uma orientação inteiramente diferente de qualquer coisa que já existiu antes. Uma orientação na qual, de acordo com as descobertas da psico-história, nunca poderia espontaneamente chegar a existir...

– Pare! – insistiu o Primeiro Orador. – Você não deve falar “nunca”. Essa é uma difamação preguiçosa dos fatos. Na verdade, a psico-história prevê somente probabilidades. Um evento em particular pode ser infinitesimalmente provável, mas a probabilidade é sempre maior do que zero.

– Sim, Orador. A orientação desejada, se posso me corrigir, então, sabe-se muito bem que não possui nenhuma probabilidade significativa de acontecer espontaneamente.

– Melhor. Qual é a orientação?

– É a de uma civilização baseada na ciência mental. Em toda a história conhecida da Humanidade, avanços foram feitos primeiramente na tecnologia física; na capacidade de lidar com o mundo inanimado. O controle do ego e da sociedade foi deixado ao acaso, ou aos esforços vagos de sistemas éticos intuitivos baseados na inspiração e na emoção. Como resultado, jamais existiu uma cultura com estabilidade maior do que 55% e, mesmo estas, foram resultado de uma grande miséria humana.

– E por que a orientação da qual estamos falando é não espontânea?

– Porque uma grande minoria de seres humanos está mentalmente equipada para participar dos avanços na ciência física, e todos recebem os benefícios crus e visíveis desses avanços. Somente uma minoria insignificante, no entanto, é intrinsecamente capaz de levar o Homem através de um envolvimento maior com a Ciência Mental; e os benefícios derivados disso, apesar de durarem mais, são mais sutis e menos aparentes. Além disso, já que tal orientação levaria ao desenvolvimento de uma ditadura benevolente dos que são mentalmente superiores... virtualmente, uma subdivisão superior da Humanidade... isso causaria muito ressentimento e não seria estável sem a aplicação de uma força que deprimiria o resto da Humanidade para o nível da brutalidade. Tal desenvolvimento é repugnante para nós, e deve ser evitado.

– Qual, então, é a solução?

– A solução é o Plano Seldon. As condições foram organizadas e mantidas de forma que, em um milênio a partir de seu começo... seiscentos anos contando a partir de agora... um Segundo Império Galáctico terá sido estabelecido no qual a Humanidade estará pronta para a liderança da Ciência Mental. Nesse mesmo intervalo, a Segunda Fundação, em seu desenvolvimento, terá criado um grupo de psicólogos pronto para assumir a liderança. Ou, como eu sempre penso, a Primeira Fundação fornece a estrutura física de uma única unidade política, e a Segunda Fundação fornece a estrutura mental de uma classe dominante já pronta.

– Estou vendo. Bastante adequado. Você acha que qualquer Segundo Império, mesmo se formado na época prevista por Seldon, completaria seu Plano?

– Não, orador, não acho. Há vários possíveis Segundos Impérios que podem ser formados no período de tempo que vai dos novecentos aos 1.700 anos depois do princípio do Plano, mas somente um desses é o Segundo Império.

– E, em vista de tudo isso, por que é necessário que a existência da Segunda Fundação fique escondida... sobretudo, da Primeira Fundação?

O Estudante procurou um sentido oculto na questão, mas não conseguiu encontrá-lo. Estava preocupado com sua resposta:

– Pela mesma razão que os detalhes do Plano, como um todo, devem ser escondidos da Humanidade em geral. As leis da psico-história são estatísticas por natureza, e se tornam inúteis se as ações de indivíduos não são aleatórias por natureza. Se um grupo grande de seres humanos aprender os detalhes-chave do Plano, suas ações serão governadas por aquele conhecimento e não serão mais aleatórias no sentido dos axiomas da psico-história. Em outras palavras, eles não serão mais perfeitamente previsíveis. Perdoe-me, Orador, mas sinto que a resposta não é satisfatória.

– E faz bem em se sentir assim. Sua resposta é bastante incompleta. É a própria Segunda Fundação que deve ser escondida, não simplesmente o Plano. O Segundo Império ainda não foi formado. Ainda temos uma sociedade que se ressentiria de uma classe dominante de psicólogos, que temeria seu desenvolvimento e lutaria contra ela. Você entende isso?”

 

 

“Não valia a pena pedir para que ela esquecesse o acontecido. Em relação ao inimigo, “esquecer” era uma palavra sem sentido; e o conselho ajudava a tornar o assunto mais importante, tendo, assim, o efeito contrário.”

 

 

“– Você nunca ganhará o respeito acadêmico, a menos que conte toda a história.

– Ah, besteira. Quem se importa com respeito acadêmico? – ela o achava encantador. Ele não tinha deixado de chamá-la de Arkady durante todo o tempo. – Meus romances serão interessantes e vão vender, e serei famosa. Qual o sentido de escrever livros, se não for para vendê-los e se tornar bem conhecida? Não quero que somente alguns velhos professores me conheçam. Precisa ser todo mundo.”

 

 

“O encanto do poder nunca desaparece completamente.”

 

 

“Arcádia Darell, vestida com roupas emprestadas, parada em um planeta emprestado em uma situação emprestada de uma vida que também parecia emprestada, queria ardentemente a segurança do útero. Ela não sabia que era isso o que queria. Ela só sabia que a própria abertura do mundo aberto era um grande perigo. Ela queria um ponto fechado em algum lugar... algum lugar distante... em algum canto inexplorado do universo... onde ninguém a procuraria.

E lá estava ela, pouco mais de catorze anos, cansada como se tivesse mais de oitenta, amedrontada como se tivesse menos de cinco.”

 

 

“Trantor era um mundo de restos e renascimentos. Como uma joia sem brilho no meio de uma desconcertante multidão de sóis no centro da Galáxia – entre os muitos e pródigos grupos de estrelas – ele sonhava, alternadamente, com o passado e o futuro.

Já fazia tempo que suas fitas insubstanciais de controle tinham se esticado desde seu revestimento metálico até os domínios mais distantes das estrelas. Trantor tinha sido uma única cidade, abrigando quatrocentos bilhões de administradores; a mais poderosa capital que já havia existido.

Até que a decadência do Império, no final, o alcançou e, no Grande Saque de um século atrás, suas forças foram repelidas e quebradas para sempre. Nas ruínas da morte, a camada de metal que circulava o planeta se enrugara numa dolorosa paródia de sua própria grandeza.

Os sobreviventes rasgaram o revestimento de metal e venderam-no a outros planetas, em troca de sementes e gado. O solo estava descoberto mais uma vez, e o planeta voltou ao princípio. Na disseminação das áreas de agricultura primitiva, ele esquecia seu passado intricado e colossal.

Ou teria esquecido, se não fossem os ainda poderosos fragmentos com suas ruínas maciças que subiam até o céu, em um silêncio amargo e digno.”

 

 

“Galáxia! Quando um homem pode saber com certeza que não é uma marionete? Como um homem pode saber que não é uma marionete?”

domingo, 7 de janeiro de 2024

A casa dos espíritos, de Isabel Allende

Editora: Bertrand Brasil

ISBN: 978-65-5838-000-9

Tradução: Carlos Martins Pereira

Opinião: ★★★★★

Páginas: 506

Sinopse: Seu primeiro romance, publicado em 1982, A casa dos espíritos se tornou em pouquíssimo tempo um sucesso absoluto de crítica e vendas, e é hoje um dos títulos míticos da literatura latino-americana.

A casa dos espíritos é tanto uma emblemática saga familiar quanto um relato acerca de um período turbulento na história de um país latino-americano indefinido. Isabel Allende constrói um mundo conduzido pelos espíritos e o enche de habitantes expressivos e muito humanos. As paixões, lutas e segredos da família Trueba abrangem três gerações e um século de transformações violentas, que culminaram em uma crise que levam o patriarca e sua amada neta para lados opostos das barricadas. Em um pano de fundo de revolução e contrarrevolução, Isabel Allende traz à vida uma família cujos laços privados de amor e ódio são mais complexos e duradouros do que as lealdades políticas que os colocam uns contra os outros.

Uma década depois de seu lançamento, foi adaptado para o cinema, numa superprodução estrelada por ícones como Meryl Streep, Glenn Close, Winona Ryder, Jeremy Irons e Antonio Banderas.



“– Estou pensando em ir para o campo, para Las Tres Marías.

– Aquilo é uma ruína, Esteban. Sempre lhe disse que é melhor vender aquela terra, mas você é teimoso como uma mula.

– Nunca se deve vender terra. É só o que fica quando todo o resto se acaba.

– Não concordo. A terra é uma ideia romântica; o que enriquece os homens é o bom faro para os negócios – argumentou Férula. – Mas você sempre disse que algum dia iria morar no campo.

– Esse dia chegou. Odeio esta cidade.

– Por que não diz logo que odeia esta casa?

– Também – respondeu ele rudemente.

– Gostaria de ter nascido homem para poder ir também – disse ela, cheia de ódio.

– Eu não gostaria de ter nascido mulher – contrapôs ele.”

 

 

“Nesse sentido as mulheres são muito estúpidas. São filhas da necessidade. Precisam de um homem para se sentir seguras e não se dão conta de que a única coisa que há a temer são os próprios homens.”

 

 

““As irmãs Mora tinham razão”, disse para si. “Não se pode encontrar quem não quer ser encontrado”.”

 

 

“– Em quase todas as famílias há algum tonto ou louco, filhinha – assegurou Clara enquanto prestava atenção em seu tricô, porque em todos aqueles anos não aprendera a tecer sem olhar. – Às vezes não são vistos, porque todos os escondem, como se fossem uma vergonha. Trancam-nos nos quartos mais isolados para que as visitas não os vejam! Na verdade, porém, não há de que se ter vergonha, pois eles também são obra de Deus.

– Mas em nossa família não há nenhum, vovó – observou Alba.

– Não. Aqui a loucura distribuiu-se por todos, e não sobrou nada para termos o nosso louco varrido.”

 

 

“—Alegro-me por ter escolhido essa profissão. Se o que você quer é andar armado, entre ser delinquente e ser da polícia, é melhor ser policial, porque tem impunidade.”

 

 

“Clara não acreditava que o mundo fosse um vale de lágrimas, mas, ao contrário, uma pilhéria de Deus, e, por isso, seria estupidez levá-lo a sério, se Ele próprio não o fazia.”

 

 

“Jaime exercia seu ofício com vocação de apóstolo e, com a mesma tenacidade com que o pai resgatara Las Tres Marías do abandono e juntara uma fortuna, ele deixava suas forças trabalhando no hospital e atendendo os pobres gratuitamente nas horas livres.

– Você é um perdedor irremediável, filho – suspirava Trueba. – Não tem noção da realidade. Ainda não se deu conta de como é o mundo. Aposta em valores utópicos que não existem.

– Ajudar o próximo é um valor que existe, pai.

– Não. A caridade, tal como seu socialismo, é uma invenção dos fracos para persuadir e utilizar os fortes.

– Não acredito em sua teoria de fortes e fracos – respondia Jaime.

– É sempre assim na natureza. Vivemos numa selva.

– Sim, porque os que determinam as regras são os que pensam como você, mas não será sempre assim.”

 

 

“Blanca, por seu lado, acostumara-se a viver sozinha. Conseguiu encontrar paz nos afazeres do casarão da esquina, em sua oficina de cerâmica e em seus presépios de animais inventados, nos quais os únicos seres que correspondiam às leis da biologia eram os membros da Sagrada Família, perdidos em meio a uma multidão de monstros. O único homem de sua vida era Pedro Terceiro, porque tinha vocação para um só amor. A força desse sentimento imutável salvou-a da mediocridade e da tristeza de seu destino. Permanecia fiel mesmo nos momentos em que ele se perdia atrás de algumas ninfas de cabelo escorrido e ossos grandes, sem o amar menos por isso. A princípio, acreditava morrer cada vez que ele se afastava, mas logo se deu conta de que suas ausências duravam o tempo de um suspiro e que, invariavelmente, ele regressava mais apaixonado e mais meigo. Blanca preferia aqueles furtivos encontros com seu amante em hospedarias à rotina de uma vida em comum, ao cansaço de um casamento e ao pesadelo de envelhecer juntos, compartilhando as penúrias do final do mês, o mau hálito da boca ao acordar, o tédio dos domingos e os achaques da idade. Era uma romântica incurável. Algumas vezes quase sucumbiu à tentação de pegar sua maleta de palhaço e o que restava das joias da meia de lã, e ir com sua filha viver com ele, mas sempre se acovardava. Talvez temesse que aquele grandioso amor, que a tantas provações resistira, não pudesse sobreviver à mais terrível de todas: a convivência.”

 

 

“Alba olhou por uma fresta da janela, lacrada com tábuas e sacos de terra, e viu os tanques alinhados na rua e uma fila dupla de homens em pé de guerra, com capacetes, cassetetes e máscaras. Compreendeu que seu avô não exagerara. Os outros também os tinham visto, e alguns tremiam. Alguém lembrou que havia um tipo novo de bombas, pior do que as lacrimogêneas, que provocava uma incontrolável caganeira, capaz de dissuadir o mais valente com a pestilência e o ridículo. Alba considerou a ideia aterradora. Precisou de um grande esforço para não chorar. Sentia pontadas no ventre e supôs que eram de medo. Miguel abraçou-a, mas isso não lhe serviu de consolo. Estavam os dois cansados e começavam a sentir a noite maldormida nos ossos e na alma.

– Não creio que se atrevam a entrar – ponderou Sebastián Gómez. – O governo já tem problemas suficientes. Não vai se meter conosco.

– Não seria a primeira vez que atacaria os estudantes – observou alguém.

– A opinião pública não permitirá – respondeu Gómez. – Estamos numa democracia. Isto não é uma ditadura e nunca será.

– Acreditamos sempre que essas coisas só acontecem em outros lugares – disse Miguel. – Até que aconteçam também conosco.”

 

 

“Fazia frio. O único que não se queixava de nada, nem sequer da sede, era Sebastián Gómez. Parecia tão incansável quanto Miguel, apesar de ter o dobro da idade e o aspecto de tuberculoso.

Fora o único professor que ficara ao lado dos estudantes quando tomaram o edifício. Dizia-se que suas pernas paralisadas eram consequência de uma rajada de metralhadora na Bolívia. Era o ideólogo que fazia arder em seus alunos a chama que a maioria viu apagar-se quando terminou a universidade e se incorporou ao mundo que, em sua primeira juventude, acreditara poder mudar.”