segunda-feira, 1 de abril de 2024

Tempos líquidos (Parte II), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-002-9

Tradução: Carlos Alberto Medeiros

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 120

Sinopse: Ver Parte I



“A primeira (transformação moderna) foi, para usar a terminologia de Castel, a “sobrevalorização” (survalorisation)4 dos indivíduos libertados das restrições impostas pela densa rede de vínculos sociais. Mas uma segunda mudança ocorreu logo em seguida: a fragilidade e vulnerabilidade sem precedentes desses indivíduos, privados da proteção que lhes era oferecida trivialmente no passado por aquela densa rede de vínculos sociais.

Na primeira transformação, os seres humanos, individualmente, viram revelar-se diante de si espaços excitante e sedutoramente amplos, onde as artes recém-descobertas da autoconstituição e do autoaperfeiçoamento poderiam ser experimentadas e praticadas. Mas a segunda transformação impediu a maioria dos indivíduos de entrarem naquele território atraente. Ser um indivíduo de jure (por decreto ou graças ao sal da culpa pessoal sendo esfregado nas feridas deixadas pela impotência socialmente induzida) não garantia de maneira alguma a individualidade de facto, e muitos careciam dos recursos para empregar os direitos ligados à primeira na luta pela segunda.5 Medo de inadequação é o nome da aflição resultante. Para muitos indivíduos por decreto, se não para todos, a inadequação era uma dura realidade, não uma premonição sombria — mas o medo da inadequação se tornou uma doença universal, ou quase. Quer a realidade genuína da inadequação já tivesse sido vivenciada ou, por sorte, mantida até então à distância, seu espectro iria assombrar a sociedade inteira o tempo todo.

Desde o começo, o Estado moderno foi, portanto, confrontado com a tarefa assustadora de administrar o medo. Precisava tecer uma rede de proteção a partir do zero a fim de substituir a antiga, deixada de lado pela revolução moderna, e prosseguir reparando-a, à medida que a modernização contínua promovida pelo Estado continuava a fragilizá-la e a esticá-la além de sua capacidade. Ao contrário da opinião já amplamente aceita, é a proteção (o seguro coletivo contra o infortúnio individual), e não a redistribuição de riqueza, que está no cerne do “Estado social” a que o desenvolvimento do Estado moderno inflexivelmente conduziu. Para pessoas privadas de capital econômico, cultural ou social (todos os ativos, de fato, exceto a capacidade de trabalho, que cada um não poderia empregar por si mesmo), “a proteção pode ser coletiva ou nenhuma”.6

Diferentemente das redes de proteção social do passado pré-moderno, as redes concebidas e administradas pelo Estado foram construídas deliberadamente e de acordo com um plano, ou evoluíram por impulso próprio a partir de outros empreendimentos de construção em larga escala característicos da modernidade em sua fase “sólida” As instituições e dispositivos previdenciários (por vezes chamados de “salários sociais”), os serviços de saúde, escolares e habitacionais dirigidos ou apoiados pelo Estado, assim como as leis de trabalho nas fábricas que estabeleciam direitos e obrigações de todas as partes nos contratos de compra e venda de mão de obra, ao mesmo tempo em que protegiam o bem-estar e os direitos dos empregados, são exemplos da primeira categoria. O modelo mais importante dessa foi a solidariedade interna da fábrica, sindical e ocupacional, que fincou raízes e floresceu “naturalmente” no ambiente relativamente estável da “fábrica fordista”, o epítome do ambiente sólido-moderno em que os “carentes de outro capital” se fixavam.

Na fábrica “fordista”, o compromisso com o lado oposto nas relações capital-trabalho era recíproco e de longo prazo, tornando ambos os lados mutuamente dependentes — mas ao mesmo tempo habilitando-os a pensar e planejar para o futuro, influenciá-lo e investir nele. A “fábrica fordista” foi, por essa razão, um lugar de conflito amargo, que explodia ocasionalmente em uma hostilidade aberta (já que a perspectiva de compromisso a longo prazo e a dependência mútua de todas as partes tornavam o confronto direto um investimento razoável e um sacrifício compensador), que ferveu e se inflamou, ainda que isso ficasse oculto. E, no entanto, o mesmo tipo de fábrica era também um abrigo seguro para se confiar no futuro, e portanto para a negociação, o compromisso e a busca de um modo consensual de convivência. Com seus percursos de carreira claramente definidos, suas rotinas cansativas mas tranquilizadoramente estáveis, o ritmo lento de mudança na composição das equipes de trabalho, a enorme utilidade das habilidades aprendidas, significando a atribuição de grande valor à experiência de trabalho acumulada, era possível manter os perigos do mercado de trabalho à distância, a incerteza podia ser suavizada, se não inteiramente eliminada, e os medos podiam ser expelidos para o domínio marginal dos “golpes do destino” e dos “acidentes fatais”, em vez de saturarem o curso da vida diária. Acima de tudo, os muitos que eram desprovidos de capital, exceto por sua capacidade de trabalhar para outros, podiam contar com a coletividade. A solidariedade transformava sua capacidade de trabalho num capital substituto — e um tipo de capital do qual se esperava, não sem razão, que pudesse contrabalançar o poder combinado de todos os outros.

Reconhecida e admiravelmente, T.H. Marshall tentou, pouco depois de o “Estado do bem-estar social” britânico ter se estabelecido por meio de uma legislação abrangente votada no Parlamento, reconstruir a lógica que conduziu o gradual desenvolvimento do significado dos direitos individuais. Segundo seu relato,7 o longo processo começou com o sonho da segurança pessoal, seguido por uma extensa luta contra o poder arbitrário de reis e príncipes. O que para estes era o direito divino de fazer e desfazer regras à sua vontade, e portanto, em última instância, seguir seus próprios caprichos e extravagâncias, significava para seus súditos uma existência à mercê da benevolência real, não muito diferente de um destino errático: uma vida de incerteza contínua e incurável, que dependia das formas misteriosas com que mudavam os benefícios concedidos pelo soberano. A graça do rei ou rainha era difícil de obter e mais ainda de manter; era facilmente retirada e impossível de garantir para sempre. Tal incerteza redundava no humilhante sentimento de impotência do povo, o qual não pôde ser mudado até que a conduta dos soberanos reais se tornasse previsível mediante a sujeição a normas jurídicas que os próprios soberanos não tinham permissão e/ou não eram capazes de alterar nem suspender por vontade própria, sem o consentimento dos súditos em questão. Em outras palavras, a segurança pessoal só pôde ser obtida com a introdução de normas impostas a todos os participantes do jogo. A universalidade das normas não transformaria todo mundo em vencedor. Tal como antes, haveria jogadores com e sem sorte, perdedores e vencedores. Mas pelo menos as regras do jogo se tornariam explícitas e possíveis de aprender, e não seriam mudadas por capricho em pleno desenrolar da partida. E os vencedores não temeriam o olhar invejoso do rei, já que os frutos de sua vitória de fato lhes pertenceriam para que deles desfrutassem eternamente: tornar-se-iam sua propriedade inalienável.

Podemos afirmar que a luta pelos direitos pessoais foi estimulada pelo desejo dos afortunados, ou dos que esperavam ganhar da próxima vez, de manterem as dádivas da boa sorte sem a necessidade de um esforço custoso, incômodo e, pior de tudo, duvidoso e eternamente inconcluso de cair nas graças do soberano e manter seus favores.

A demanda por direitos políticos, ou seja, por desempenhar um papel significativo na elaboração das leis, foi, segundo Marshall, o ponto seguinte da agenda, o passo lógico a ser dado quando os direitos pessoais já tinham sido obtidos e era preciso defendê-los. No entanto, pode-se concluir, do que acabou de ser dito, que os dois conjuntos de direitos, pessoal e político, só puderam ser transformados em objetos de luta, obtidos e tornados seguros simultaneamente. Dificilmente seriam alcançados e usufruídos em separado. Parece haver entre ambos uma dependência circular, uma verdadeira relação do tipo “ovo e galinha”. A segurança das pessoas e a proteção de suas propriedades são condições indispensáveis para a capacidade de lutar efetivamente pelo direito à participação política, mas não podem se estabelecer de forma definitiva nem serem adotadas com confiança, a menos que a forma das leis impostas a todos tenha se tornado dependente de seus beneficiários.”

4. Castel, L’insécurité sociale, p.22.

5. Para uma discussão mais ampla, ver, de minha autoria, Individualized Society, Polity, 2002.

6. Ibid., p.46.

7. Ver T.H. Marshall, Citizenship and Social Class, and Other Essays. Cambridge University Press, 1950.

 

 

“Foi a segunda solução que inspirou o projeto de Estado do bem-estar social de lorde Beveridge, a encarnação mais abrangente da ideia de T.H. Marshall de direitos sociais — o terceiro elemento na cadeia de direitos, sem o qual o projeto democrático tende a se interromper antes da conclusão. “Um vigoroso programa de bem-estar social”, como d’Arcais resume seu argumento mais de meio século depois de Beveridge, “deve ser parte integrante, e constitucionalmente protegida, de todo projeto democrático.” Sem direitos políticos, as pessoas não podem ter confiança em seus direitos pessoais; mas sem direitos sociais, os direitos políticos continuarão sendo um sonho inatingível, uma ficção inútil ou uma piada cruel para grande parte daqueles a quem eles foram concedidos pela letra da lei. Se os direitos sociais não forem assegurados, os pobres e indolentes não poderão exercer os direitos políticos que formalmente possuem. E, assim, os pobres terão apenas as garantias que o governo julgue necessário conceder-lhes, e que sejam aceitáveis para aqueles dotados da verdadeira musculatura política para ganhar e se manter no poder. Enquanto permanecerem desprovidos de recursos, os pobres podem esperar no máximo serem recebedores de transferências, não sujeitos de direitos.

Lorde Beveridge estava certo em acreditar que essa visão do seguro abrangente, coletivamente endossado para todos, era a consequência inevitável da ideia liberal, assim como condição indispensável para uma democracia liberal plena. A declaração de guerra ao medo de Franklin Delano Roosevelt baseou-se num pressuposto semelhante.

A liberdade de escolha é acompanhada de imensos e incontáveis riscos de fracasso. Muitas pessoas podem considerá-los insustentáveis, descobrindo ou suspeitando que eles possam exceder sua capacidade pessoal de enfrentá-los. Para a maior parte das pessoas, a liberdade de escolha continuará sendo um espectro impalpável e um sonho infundado, a menos que o medo da derrota seja mitigado por uma política de seguro lançada em nome da comunidade, na qual possam confiar e com a qual possam contar em caso de infortúnio. Enquanto continuar sendo um espectro, a dor da desesperança será superada pela humilhação do infortúnio; a capacidade de enfrentar os desafios da vida, diariamente testada, é afinal a própria oficina em que a autoconfiança é forjada ou fundida.

Sem um seguro endossado coletivamente, os pobres e indolentes (e, de modo mais geral, os fracos que se equilibram à beira da exclusão) não têm estímulo para o engajamento político — tampouco para a participação no jogo democrático das eleições. É improvável que algum tipo de salvação venha de um Estado político que não é, e se recusa a ser, um Estado social também. Sem direitos sociais para todos, um grande — e provavelmente crescente — número de pessoas irá considerar seus direitos políticos inúteis e indignos de atenção. Se os direitos políticos são necessários para se estabelecerem os direitos sociais, os direitos sociais são indispensáveis para manter os direitos políticos em operação. Os dois tipos de direitos precisam um do outro para sobreviver; essa sobrevivência só pode ser sua realização conjunta.”

 

 

“Os medos especificamente modernos nasceram na primeira rodada da desregulamentação-com-individualização, no momento em que os vínculos inter-humanos de parentesco e vizinhança, estreitamente atados por laços comunitários ou empresariais, aparentemente eternos, mas de qualquer modo sobrevivendo desde tempos imemoriais, tinham sido afrouxados ou rompidos. O modo sólido-moderno de administração do medo tendia a substituir os vínculos “naturais” irreparavelmente danificados por seus equivalentes artificiais na forma de associações, sindicatos e coletividades de tempo parcial, embora quase permanentes, unificadas por interesses compartilhados e rotinas diárias. A solidariedade estava para triunfar sobre a pertença como o principal escudo contra um destino cada vez mais perigoso.

A desintegração da solidariedade significou o fim da maneira sólido-moderna de administrar o medo. Era chegada a vez de as proteções modernas, artificiais e administradas serem afrouxadas, desmontadas ou removidas. A Europa, a primeira região do planeta a passar pela retificação moderna e a percorrer todo o espectro de suas sequelas, está agora atravessando, de modo muito semelhante aos Estados Unidos, uma “desregulamentação-com-individualização do tipo 2” — embora desta vez não o faça por escolha própria, mas sucumbindo à pressão de forças globais que não controla mais nem espera refrear.

Essa segunda desregulamentação não foi seguida, contudo, de novas formas sociais de administração do medo. A tarefa de enfrentar os temores decorrentes das novas incertezas tem sido, da mesma forma que os próprios medos, desregulamentada e “terceirizada”, ou seja, deixada aos esforços e iniciativas locais, e em grande parte privatizada — transferida, em larga medida, para a esfera da “política de vida”, ou seja, deixada amplamente aos cuidados, engenhosidade e astúcia de indivíduos, assim como aos mercados, que não aceitam e eficazmente rejeitam todas as formas de interferência comunal (política), para não falar de controle.

Uma vez que a competição substitui a solidariedade, os indivíduos se veem abandonados aos seus próprios recursos — lamentavelmente escassos e evidentemente inadequados. A dilapidação e decomposição dos vínculos coletivos fizeram deles, sem pedir seu consentimento, indivíduos de direito, embora o que aprendam nas atividades de suas vidas seja que verdadeiramente tudo no atual estado de coisas milita contra sua ascensão ao modelo postulado de indivíduos de facto. Uma brecha ampla (e, ao que podemos ver, crescente) separa a quantidade e a qualidade dos recursos que seriam necessários para a produção efetiva da segurança e da liberdade em relação ao medo, do tipo faça-você-mesmo, mas ainda assim confiáveis e fidedignas, da soma total das matérias-primas, ferramentas e habilidades que a maioria dos indivíduos pode razoavelmente esperar vir a adquirir e manter.”

 

 

“A irrevogabilidade da exclusão é uma consequência direta, embora imprevista, da decomposição do Estado social — como uma rede de instituições estabelecidas, mas talvez mais significativamente como um ideal e um projeto segundo os quais as realidades são avaliadas e as ações, estimuladas. A degradação do ideal e o definhamento e declínio do projeto pressagiam, afinal, o desaparecimento das oportunidades de redenção e a retirada do direito de apelação, e assim também a gradual dissipação da esperança e a redução da vontade de resistir. Em vez de ser a condição de estar “desempregado” (termo que implica um afastamento da norma que é “estar empregado”, uma aflição temporária que pode e deve ser curada), estar sem emprego parece cada vez mais um estado de “redundância” — ser rejeitado, rotulado de supérfluo, inútil, não empregável e destinado a permanecer “economicamente inativo”. Estar sem emprego implica ser descartável, talvez até ser descartado de uma vez por todas, destinado ao lixo do “progresso econômico” — essa mudança que se reduz, em última instância, a fazer o mesmo trabalho e obter os mesmos resultados econômicos, porém como uma força de trabalho mais reduzida e com “custos de mão de obra” menores que antes.

Apenas uma linha tênue separa hoje os desempregados, e especialmente os que estão nessa condição há muito tempo, de uma queda no buraco negro da “subclasse”: homens e mulheres que não se encaixam em nenhuma divisão social legítima, indivíduos deixados fora das classes e que não são portadores de nenhuma das funções reconhecidas, aprovadas, úteis e indispensáveis que os membros “normais” da sociedade executam. Pessoas que nada acrescentam à vida da sociedade, a não ser o que esta poderia fazer muito bem sem elas e de fato ganharia por se livrar delas.

Não menos tênue é a linha que separa os “excedentes” dos criminosos: a “subclasse” e os “criminosos” são apenas duas subcategorias de excluídos, “socialmente desajustados” ou até “elementos antissociais”, que se diferenciam entre si mais pela classificação oficial e pelo tratamento que recebem do que por sua própria atitude e conduta. Tal como as pessoas sem emprego, os criminosos (ou seja, aqueles destinados à prisão, acusados e aguardando julgamento, sob supervisão da polícia ou simplesmente com ficha na polícia) não são mais vistos como temporariamente expulsos da vida social normal e destinados a serem “reeducados”, “reabilitados” e “reenviados à comunidade” na primeira oportunidade — mas como permanentemente marginalizados, inadequados para a “reciclagem social” e designados a serem mantidos permanentemente fora, longe da comunidade dos cidadãos cumpridores da lei.”

 

 

“Áreas habitadas são descritas como “urbanas” e chamadas de “cidades” se forem caracterizadas por uma densidade relativamente alta em termos de população, interação e comunicação. Hoje, elas também podem ser os lugares em que inseguranças socialmente concebidas e incubadas são confrontadas de uma forma altamente condensada e, portanto, particularmente tangível. Também é nos lugares ditos “urbanos” que a elevada densidade da interação humana coincidiu com a tendência de o medo nascido da insegurança buscar e encontrar escoadouros e objetos sobre o qual se possa descarregar — embora essa tendência nem sempre tenha sido a característica distintiva desses lugares.

Como assinala Nan Ellin, uma das pesquisadoras mais afiadas e uma das analistas mais argutas das tendências urbanas contemporâneas, proteger-se do perigo era “um dos principais incentivos à construção de cidades cujas divisas eram muitas vezes definidas por amplas muralhas ou cercas, das antigas aldeias da Mesopotâmia às cidades medievais e aos assentamentos dos nativos americanos”.1 Muralhas, fossos e paliçadas assinalavam a divisa entre “nós” e “eles”, ordem e selvageria, paz e guerra: inimigos eram aqueles deixados do outro lado da cerca e que não tinham permissão de atravessá-la. “De lugar relativamente seguro”, contudo, a cidade tem sido associada, principalmente nos últimos cento e poucos anos, “mais ao perigo que à proteção”.

Hoje, numa curiosa mudança de seu papel histórico e em desafio às intenções originais de seus construtores e às expectativas de seus moradores, nossas cidades se transformam rapidamente de abrigos contra o perigo em principal fonte desse mesmo perigo. Diken e Laustsen chegam a sugerir que o vínculo milenar “entre civilização e barbárie está invertido. A vida nas cidades se transforma num estado da natureza caracterizado pelo domínio do terror, acompanhado pelo medo onipresente.”2

Podemos dizer que agora as fontes do perigo se mudaram quase totalmente para áreas urbanas e lá se estabeleceram. Amigos — mas também inimigos, e acima de tudo os esquivos e misteriosos estrangeiros que vagueiam ameaçadoramente entre os dois extremos — agora se misturam e caminham lado a lado nas ruas das cidades. A guerra contra a insegurança, e particularmente contra os perigos e os riscos à segurança pessoal, agora é travada dentro da cidade, onde se estabelecem os campos de batalha urbanos e se traçam as linhas de frente. Trincheiras fortemente armadas (acessos intransponíveis) e bunkers (prédios ou complexos fortificados e rigorosamente vigiados) destinados a separar, manter a distância e impedir a entrada de estranhos estão se tornando rapidamente um dos aspectos mais visíveis das cidades contemporâneas — embora assumam muitas formas, e ainda que seus idealizadores façam o possível para misturar suas criações à paisagem da cidade, “normalizando” desse modo o estado de emergência em que seus moradores, viciados em proteção, mas sempre pouco seguros em relação a ela, vivem seu dia a dia.

“Quanto mais nos afastamos de nossa vizinhança imediata, mais contamos com a vigilância daquele ambiente... Os lares de muitas áreas urbanas de todo o mundo agora existem para proteger seus habitantes, não para integrar as pessoas com suas comunidades”, observam Gumpert e Drucker.3 Separar e manter distância se tornam a estratégia mais comum na luta urbana atual pela sobrevivência. O continuum ao longo do qual se assinalam os resultados dessa luta se estende entre os polos dos guetos urbanos voluntários e involuntários. Os moradores sem meios, e por isso vistos pelos outros como ameaças potenciais à sua segurança, tendem a ser forçados a se afastar das partes mais benignas e agradáveis da cidade e amontoados em distritos separados, semelhantes a guetos. Os moradores com recursos compram casas em áreas separadas por eles escolhidas, também parecidas com guetos, e impedem todos os outros de se fixarem nelas. Além disso, fazem o possível para desligar o mundo onde vivem daqueles dos demais habitantes das cidades. Cada vez mais seus guetos voluntários se transformam em guarnições ou postos avançados da extraterritorialidade.”

1. Nan Ellin, “Fear and city building”. Hedgehog Review, 5/3 (outono de 2003), p.43-61.

2. B. Diken e C. Laustsen, “Zones of indistinction: security, terror and bare life”. Space and Culture, 5 (2002), p.290-307.

3. G. Gumpert e S. Drucker, “The mediated home in a global village”. Communication Research, 4 (1996), p.422-38.

 

 

“Resumindo uma longa história: as cidades se tornaram depósitos sanitários de problemas concebidos e gerados globalmente. Os moradores das cidades e seus representantes eleitos tendem a se confrontar com uma tarefa que nem pela força da imaginação poderiam realizar: a de encontrar soluções locais para problemas e dilemas concebidos globalmente.

Assim, permitam-me repetir, surge o paradoxo de uma política cada vez mais local num mundo progressivamente modelado e remodelado por processos globais. Como observou Castells, a marca cada vez mais conspícua de nossa época é a intensa (poderíamos dizer: compulsiva e crescentemente obsessiva) “produção de significado e identidade: meu vizinho, minha comunidade, minha cidade, minha escola, minha árvore, meu rio, minha praia, minha capela, minha paz, meu meio ambiente”.14 “Indefesas diante do turbilhão global, as pessoas se aferram a si mesmas.” E deixem-me observar que, quanto mais “se aferram a si mesmas”, mais “indefesas diante do turbilhão global” elas tendem a ficar, e portanto menos capazes de decidir, que dirá afirmar, os significados e as identidades locais, que aparentemente são seus — para grande satisfação dos operadores globais, que não têm motivo para temer os indefesos.”

14. Manuel Castells, The Power of Identity, Blackwell, 1997, p.25,61.

 

 

“Digitei a palavra “utopia” há pouco em meu computador e o buscador Google apresentou 4.400.000 websites {provavelmente terá acrescentado muitos outros quando você estiver lendo estas palavras) — um número impressionante mesmo pelos padrões, notoriamente excessivos, da internet, e dificilmente um sintoma de um cadáver em decomposição ou mesmo de um corpo em convulsões terminais. (...)

Não vou fingir que percorri todos os 4.400.000 sites {a intenção de fazê-lo talvez pudesse ser relacionada entre os mais utópicos dos projetos utópicos), mas a impressão que tive depois de ler uma amostra aleatória estatisticamente razoável é de que o termo “utopia” foi apropriado principalmente por empresas de viagens, cosméticos e decoração de interiores, assim como por firmas de moda. Os sites têm uma coisa em comum: todos oferecem serviços individuais a quem procura a satisfação individual e a fuga individual aos desconfortas sofridos individualmente.

Outra impressão que tive: na rara ocasião em que aparece a palavra “progresso” nas páginas desses sites comerciais, ela não se refere mais a um impulso à frente. Em vez de uma corrida atrás de um alvo que corre à nossa frente, ela implica uma ameaça que torna imperativa uma fuga bem-sucedida; inspira o impulso de fugir de um desastre que bafeja em seu pescoço...

“Utopia” denotava um objetivo distante cobiçado e sonhado ao qual o progresso deveria, poderia e iria finalmente conduzir os que procuravam um mundo que atendesse melhor as necessidades humanas. Nos sonhos contemporâneos, contudo, a imagem do “progresso” parece ter saído do discurso do aperfeiçoamento compartilhado para o da sobrevivência individual. O progresso não é mais imaginado no contexto de um impulso para uma arrancada à frente, mas em conexão com um esforço desesperado para permanecer na corrida. A consciência do progresso toma a pessoa cautelosa e demanda vigilância: ao ouvirmos falar da “marcha do tempo”, tendemos a nos preocupar em sermos deixados para trás, em cairmos de um veículo em rápida aceleração, em não encontrarmos um lugar na próxima rodada da “dança das cadeiras”. (...) O tempo flui, e o truque é se manter no ritmo das ondas. Se você não quer afundar, continue surfando, e isso significa mudar o guarda-roupa, a mobília, o papel de parede, a aparência, os hábitos — em suma, você mesmo — tão frequentemente quanto consiga.

Não preciso acrescentar, pois isso deveria estar óbvio, que essa nova ênfase no descarte das coisas — em abandoná-las, se livrar delas – e não na sua aquisição se encaixa bem na lógica de nossa economia orientada pelo consumo. As pessoas apegadas às roupas, computadores, celulares e cosméticos de ontem representariam um desastre para uma economia cuja principal preocupação, e condição sine qua non para sua existência, é a rapidez com que os produtos vendidos e comprados são jogados fora. E nessa economia o despejo de lixo é a indústria de vanguarda.”

 

 

“Cada vez mais, fugir se torna o nome do jogo mais famoso do momento. Semanticamente, a fuga é o exato oposto da utopia, mas psicologicamente ela é, nas atuais circunstâncias, seu único substituto disponível: pode-se dizer sua nova versão, atualizada e no estado da arte, remodelada sob medida para nossa desregulamentada e individualizada sociedade de consumidores. Você já não espera seriamente fazer do mundo um lugar melhor para se viver; não consegue sequer tornar realmente seguro aquele melhor lugar do mundo que resolveu construir para si mesmo. A insegurança veio para ficar, não importa o que aconteça. Mais que tudo, “boa sorte” significa manter longe a “má sorte”.”

 

 

“Diferentemente das utopias de outrora, a utopia dos caçadores não oferece um significado para a vida, seja ele autêntico ou fraudulento. Só ajuda a afugentar da mente as questões relativas ao significado da vida. Tendo remodelado o curso da vida numa série interminável de buscas autocentradas — cada episódio vivido tendo como função a introdução ao próximo — ela não dá chance para a reflexão sobre a direção e o sentido disso tudo. Quando (se) essa chance realmente aparece, no momento em que se abandona a vida de caçador, ou se é banido dela, geralmente é muito tarde para que essa reflexão tenha algum impacto sobre a forma como a vida — a própria e a dos outros — é moldada, e portanto muito tarde para se opor ao seu formato atual e disputar efetivamente a sua propriedade.”

Tempos líquidos (Parte I), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-002-9

Tradução: Carlos Alberto Medeiros

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 120

Sinopse: A insegurança é a marca fundamental dos tempos líquido-modernos. Terrorismo, crime organizado, desemprego e solidão: todos esses são fenômenos típicos de uma era na qual a exclusão e a desintegração da solidariedade expõem o homem aos seus temores mais graves.

Segundo Bauman, o desmonte dos mecanismos de proteção aos menos favorecidos, somado aos efeitos incontroláveis gerados pela globalização, propiciou um ambiente inseguro por definição. Assim, as metrópoles se tornam o local por excelência das ansiedades.

“Construídas para fornecer proteção a todos os seus habitantes, as cidades hoje em dia se associam com mais frequência ao perigo que à segurança”, afirma Bauman. Não à toa, para ele, é no medo que se baseia a legitimidade da política contemporânea, incapaz de alcançar a origem global dos problemas ― o que acaba por alimentar, ainda mais, as angústias da vida na modernidade líquida.



“Pelo menos na parte “desenvolvida” do planeta, têm acontecido, ou pelo menos estão ocorrendo atualmente, algumas mudanças de curso seminais e intimamente interconectadas, as quais criam um ambiente novo e de fato sem precedentes para as atividades da vida individual, levantando uma série de desafios inéditos.

Em primeiro lugar, a passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida” — ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. É pouco provável que essas formas, quer já presentes ou apenas vislumbradas, tenham tempo suficiente para se estabelecer, e elas não podem servir como arcabouços de referência para as ações humanas, assim como para as estratégias existenciais a longo prazo, em razão de sua expectativa de vida curta: com efeito, uma expectativa mais curta que o tempo que leva para desenvolver uma estratégia coesa e consistente, e ainda mais curta que o necessário para a realização de um “projeto de vida” individual.

Em segundo lugar, a separação e o iminente divórcio entre o poder e a política, a dupla da qual se esperava, desde o surgimento do Estado moderno e até muito recentemente, que compartilhasse as fundações do Estado-nação “até que a morte os separasse” Grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao Estado moderno, agora se afasta na direção de um espaço global {e, em muitos casos, extraterritorial) politicamente descontrolado, enquanto a política — a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma ação — é incapaz de operar efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local. A ausência de controle político transforma os poderes recém-emancipados numa fonte de profunda e, em princípio, incontrolável incerteza, enquanto a falta de poder torna as instituições políticas existentes, assim como suas iniciativas e seus empreendimentos, cada vez menos relevantes para os problemas existenciais dos cidadãos dos Estados-nações e, por essa razão, atraem cada vez menos a atenção destes. Entre ambos, os dois resultados inter-relacionados desse divórcio obrigam ou encorajam os órgãos do Estado a abandonar, transferir ou (para usar os termos que entraram recentemente na moda no jargão político) “subsidiar” e “terceirizar” um volume crescente de funções que desempenhavam anteriormente. Abandonadas pelo Estado, essas funções se tomam um play-ground para as forças do mercado, notoriamente volúveis e inerentemente imprevisíveis, e/ou são deixadas para a iniciativa privada e aos cuidados dos indivíduos.

Em terceiro lugar, a retração ou redução gradual, embora consistente, da segurança comunal, endossada pelo Estado, contra o fracasso e o infortúnio individuais retira da ação coletiva grande parte da atração que esta exercia no passado e solapa os alicerces da solidariedade social. A “comunidade”, como uma forma de se referir à totalidade da população que habita um território soberano do Estado, parece cada vez mais destituída de substância. Os laços inter-humanos, que antes teciam uma rede de segurança digna de um amplo e contínuo investimento de tempo e esforço, e valiam o sacrifício de interesses individuais imediatos (ou do que poderia ser visto como sendo do interesse de um indivíduo), se tomam cada vez mais frágeis e reconhecidamente temporários. A exposição dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão de obra e de mercadorias inspira e promove a divisão e não a unidade. Incentiva as atitudes competitivas, ao mesmo tempo em que rebaixa a colaboração e o trabalho em equipe à condição de estratagemas temporários que precisam ser suspensos ou concluídos no momento em que se esgotarem seus benefícios. A “sociedade” é cada vez mais vista e tratada como uma “rede” em vez de uma “estrutura” (para não falar em uma “totalidade sólida”): ela é percebida e encarada como uma matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de permutações possíveis.

Em quarto lugar, o colapso do pensamento, do planejamento e da ação a longo prazo, e o desaparecimento ou enfraquecimento das estruturas sociais nas quais estes poderiam ser traçados com antecedência, leva a um desmembramento da história política e das vidas individuais numa série de projetos e episódios de curto prazo que são, em princípio, infinitos e não combinam com os tipos de sequências aos quais conceitos como “desenvolvimento”, “maturação”, “carreira” ou “progresso” (todos sugerindo uma ordem de sucessão pré-ordenada) poderiam ser significativamente aplicados. Uma vida assim fragmentada estimula orientações “laterais”, mais do que “verticais”. Cada passo seguinte deve ser uma resposta a um diferente conjunto de oportunidades e a uma diferente distribuição de vantagens, exigindo assim um conjunto diferente de habilidades e um arranjo diferente de ativos. Sucessos passados não aumentam necessariamente a probabilidade de vitórias futuras, muito menos as garantem, enquanto meios testados com exaustão no passado precisam ser constantemente inspecionados e revistos, pois podem se mostrar inúteis ou claramente contraproducentes com a mudança de circunstâncias. Um imediato e profundo esquecimento de informações defasadas e o rápido envelhecimento de hábitos pode ser mais importante para o próximo sucesso do que a memorização de lances do passado e a construção de estratégias sobre um alicerce estabelecido pelo aprendizado prévio.

Em quinto lugar, a responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstâncias voláteis e constantemente instáveis é jogada sobre os ombros dos indivíduos — dos quais se espera que sejam “free-choosers” e suportem plenamente as consequências de suas escolhas. Os riscos envolvidos em cada escolha podem ser produzidos por forças que transcendem a compreensão e a capacidade de ação do indivíduo, mas é destino e dever deste pagar o seu preço, pois não há receitas endossadas que, caso fossem adequadamente aprendidas e diligentemente seguidas, poderiam permitir que erros fossem evitados, ou que pudessem ser, em caso de fracasso, consideradas responsáveis. A virtude que se proclama servir melhor aos interesses do indivíduo não é a conformidade às regras (as quais, em todo caso, são poucas e contraditórias), mas a flexibilidade, a prontidão em mudar repentinamente de táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento — e buscar oportunidades mais de acordo com sua disponibilidade atual do que com as próprias preferências.

É o momento de perguntar como essas mudanças modificam o espectro de desafios que homens e mulheres encontram em seus objetivos individuais e portanto, obliquamente, como influenciam a maneira como estes tendem a viver suas vidas. Este livro é uma tentativa de fazer exatamente isso. De indagar, mas não responder, muito menos pretender fornecer respostas definitivas, visto que, segundo o autor, todas as respostas seriam peremptórias, prematuras e potencialmente enganosas. Afinal, o efeito geral das mudanças listadas acima é a necessidade de agir, planejar ações, calcular ganhos e perdas esperados dessas ações e avaliar seus resultados em condições de incerteza endêmica. O melhor que o autor tentou e se sentiu capacitado a fazer foi estudar as causas dessa incerteza—e talvez desnudar alguns dos obstáculos que impedem a sua compreensão, e assim também nossa capacidade de enfrentar (individual e, sobretudo, coletivamente) os desafios que qualquer tentativa de controlá-las necessariamente apresenta.”

 

 

““Se você quer a paz, cuide da justiça”, advertia a sabedoria antiga — e, diferentemente do conhecimento, a sabedoria não envelhece. Atualmente, a ausência de justiça está bloqueando o caminho para a paz, tal como o fazia há dois milênios. Isso não mudou. O que mudou é que agora a “justiça” é, diferentemente dos tempos antigos, uma questão planetária, medida e avaliada por comparações planetárias — e isso por duas razões.

Em primeiro lugar, num planeta atravessado por “autoestradas da informação”, nada que acontece em alguma parte dele pode de fato, ou ao menos potencialmente, permanecer do “lado de fora” intelectual. Não há terra nulla, não há espaço em branco no mapa mental, não há terra nem povo desconhecidos, muito menos incognoscíveis. A miséria humana de lugares distantes e estilos de vida longínquos, assim como a corrupção de outros lugares distantes e estilos de vida longínquos, são apresentadas por imagens eletrônicas e trazidas para casa de modo tão nítido e pungente, vergonhoso ou humilhante como o sofrimento ou a prodigalidade ostensiva dos seres humanos próximos de casa, durante seus passeios diários pelas ruas das cidades. As injustiças a partir das quais se formam os modelos de justiça não são mais limitadas à vizinhança imediata e coligidas a partir da “privação relativa” ou dos “diferenciais de rendimento” por comparação com vizinhos de porta ou colegas situados próximos na escala do ranking social.

Em segundo lugar, num planeta aberto à livre circulação de capital e mercadorias, o que acontece em determinado lugar tem um peso sobre a forma como as pessoas de todos os outro lugares vivem, esperam ou supõem viver. Nada pode ser considerado com certeza num “lado de fora” material. Nada pode verdadeiramente ser, ou permanecer por muito tempo, indiferente a qualquer outra coisa: intocado e intocável. O bem-estar de um lugar, qualquer que seja, nunca é inocente em relação à miséria de outro. No resumo de Milan Kundera, essa “unidade da espécie humana”, trazida à tona pela globalização, significa essencialmente que “não existe nenhum lugar para onde se possa escapar”.1

1. Milan Kundera, L’art du roman. Gallimard, 1986.

 

 

“Se a ideia de “sociedade aberta” era originalmente compatível com a autodeterminação de uma sociedade livre que cultivava essa abertura, ela agora traz à mente da maioria de nós a experiência aterrorizante de uma população heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por forças que não controla nem entende totalmente; uma população horrorizada por sua própria vulnerabilidade, obcecada com a firmeza de suas fronteiras e com a segurança dos indivíduos que vivem dentro delas — enquanto é justamente essa firmeza de fronteiras e essa segurança da vida dentro delas que geram um domínio ilusório e parecem ter a tendência de permanecer como ilusões enquanto o planeta for submetido unicamente à globalização negativa. Num planeta negativamente globalizado, a segurança não pode ser obtida, muito menos assegurada, dentro de um único país ou de um grupo selecionado de países — não apenas por seus próprios meios nem independentemente do que acontece no resto do mundo.”

 

 

“Uma vez investido sobre o mundo humano, o medo adquire um ímpeto e uma lógica de desenvolvimento próprios e precisa de poucos cuidados e praticamente nenhum investimento adicional para crescer e se espalhar — irrefreavelmente. Nas palavras de David L. Altheide, o principal não é o medo do perigo, mas aquilo no qual esse medo pode se desdobrar, o que ele se torna.6 A vida social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças, dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de artes marciais. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir o senso de desordem que nossas ações buscam evitar.

Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo. São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como realidade diária, dando corpo à palavra. O medo agora se estabeleceu, saturando nossas rotinas cotidianas; praticamente não precisa de outros estímulos exteriores, já que as ações que estimula, dia após dia, fornecem toda a motivação e toda a energia de que ele necessita para se reproduzir. Entre os mecanismos que buscam aproximar-se do modelo de sonhos do motoperpétuo, a autorreprodução do emaranhado do medo e das ações inspiradas por esse sentimento está perto de reclamar uma posição de destaque.

É como se os nossos medos tivessem ganhado a capacidade de se autoperpetuar e se autofortalecer; como se tivessem adquirido um ímpeto próprio — e pudessem continuar crescendo com base unicamente nos seus próprios recursos. Essa aparente autossuficiência é, evidentemente, apenas uma ilusão, tal como no caso dos outros numerosos mecanismos que anunciam o milagre do movimento perpétuo capaz da autopropulsão e da autonutrição. Obviamente, o ciclo do medo e das ações por ele ditadas não deslizaria tão tranquilamente nem continuaria ganhando velocidade se não continuasse a extrair sua energia de tremores existenciais.

A presença desses tremores não é exatamente novidade: os sismos existenciais têm acompanhado os seres humanos ao longo de toda a sua história, pois nenhum dos ambientes sociais em que as realizações da vida humana têm sido conduzidas jamais ofereceu um seguro infalível contra os golpes do “destino” (assim chamados para distingui-los das adversidades que os seres humanos poderiam evitar, e para comunicar nem tanto a natureza peculiar desses golpes em si, mas o reconhecimento da incapacidade humana de prevê-los, que dirá evitá-los ou controlá-los).”

6. David L. Altheide, “Mass media, crime, and the discourse of fear” Hedgehog Review, 5/3 (outono de 2003), p.9-25.

 

 

“O terreno sobre o qual se presume que nossas perspectivas de vida se assentem é reconhecidamente instável — tal como são os nossos empregos e as empresas que os oferecem, nossos parceiros e nossas redes de amizade, a posição que desfrutamos na sociedade mais ampla e a autoestima e a autoconfiança que o acompanham. O “progresso”, que já foi a manifestação mais extrema do otimismo radical e uma promessa de felicidade universalmente compartilhada e permanente, se afastou totalmente em direção ao polo oposto, distópico e fatalista da antecipação: ele agora representa a ameaça de uma mudança inexorável e inescapável que, em vez de augurar a paz e o sossego, pressagia somente a crise e a tensão e impede que haja um momento de descanso. O progresso se transformou numa espécie de dança das cadeiras interminável e ininterrupta, na qual um momento de desatenção resulta na derrota irreversível e na exclusão irrevogável. Em vez de grandes expectativas e sonhos agradáveis, o “progresso” evoca uma insônia cheia de pesadelos de “ser deixado para trás” — de perder o trem ou cair da janela de um veículo em rápida aceleração.

Incapazes de reduzir o ritmo estonteante da mudança, muito menos prever ou controlar sua direção, nos concentramos nas coisas que podemos, acreditamos poder ou somos assegurados de que podemos influenciar: tentamos calcular e reduzir o risco de que nós, pessoalmente, ou aqueles que nos são mais próximos e queridos no momento, possamos nos tornar vítimas dos incontáveis perigos que o mundo opaco e seu futuro incerto supostamente têm guardado para nós. Nossa atenção é chamada para observar “os sete sinais do câncer” ou “os cinco sintomas da depressão”, ou para exorcizar o espectro da pressão alta, do nível alto de colesterol, do estresse ou da obesidade. Em outras palavras, buscamos alvos substitutos sobre os quais possamos descarregar o medo existencial excedente que foi barrado de seus escoadouros naturais, e encontramos esses alvos paliativos ao tomarmos cuidadosas precauções contra a inalação da fumaça do cigarro de outra pessoa, a ingestão de comida gordurosa ou de “más” bactérias (ao mesmo tempo em que sorvemos os líquidos que prometem conter as “boas”), a exposição ao sol ou o sexo desprotegido. Aqueles que podem dar-se ao luxo de se fortalecerem contra todos os perigos, visíveis ou invisíveis, atuais ou previstos, familiares ou ainda desconhecidos, difusos, porém ubíquos, protegendo -se por trás de muros, equipando os acessos a moradias com câmeras de TV, contratando seguranças armados, dirigindo carros blindados (como os notórios veículos utilitários esportivos), , usando trajes à prova de balas ou aprendendo artes marciais. “O problema”, para citar mais uma vez David L. Altheide, “é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir um senso de desordem que nossas ações precipitam.” Cada fechadura extra na porta da frente, em reação aos sucessivos rumores sobre criminosos de aparência estrangeira cobertos por mantos cheios de adagas, e cada revisão da dieta, em resposta aos sucessivos “pânicos alimentares”, fazem o mundo parecer mais traiçoeiro e assustador, e estimulam mais ações defensivas — que vão, infelizmente, acrescentar vigor à capacidade do medo de se autopropagar.”

 

 

“O lema “lei e ordem”, cada vez mais reduzido à promessa de segurança pessoal (mais exatamente corporal), se tornou uma grande, talvez a maior, bandeira nos manifestos políticos e nas campanhas eleitorais, enquanto a exibição de ameaças à segurança pessoal se tornou um grande, talvez o maior, trunfo na guerra de audiência dos meios de comunicação de massa, reabastecendo constantemente o capital do medo e ampliando ainda mais o sucesso tanto de seu marketing quanto de seu uso político.”

 

 

“As mensagens dirigidas dos centros do poder político tanto para os ricos como para os infelizes apresentam “mais flexibilidade” como a única cura para uma insegurança já insustentável — e assim retratam a perspectiva de mais incerteza, mais privatização dos problemas, mais solidão e impotência e, na verdade, mais incerteza ainda. Elas excluem a possibilidade de uma segurança existencial que se baseie em alicerces coletivos e assim não oferecem incentivo a ações solidárias; em lugar disso, encorajam seus ouvintes a se concentrarem na sua sobrevivência individual ao estilo “cada um por si e Deus por todos”- num mundo incuravelmente fragmentado e atomizado, e portanto cada vez mais incerto e imprevisível.”

 

 

“A vida solitária de tais indivíduos pode ser alegre, e é provavelmente atarefada — mas também tende a ser arriscada e assustadora. Num mundo assim, não restam muitos fundamentos sobre os quais os indivíduos em luta possam construir suas esperanças de resgate e a que possam recorrer em caso de fracasso pessoal. Os vínculos humanos são confortavelmente frouxos, mas, por isso mesmo, terrivelmente precários, e é tão difícil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefícios, e mais ainda suas virtudes morais.

O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da “globalização negativa”. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos. Citando mais uma vez Attali, as nações organizadas em Estados “perdem sua influência na direção geral das coisas e, no processo de globalização, sofrem o confisco dos meios de que precisariam para orientar seu destino e resistir às numerosas formas que o medo pode assumir”.

A sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco provável que confie na proteção oferecida por este. Ela agora está exposta à rapacidade de forças que não controla e não espera, nem pretende, recapturar e dominar. É por essa razão, em primeiro lugar, que os governos dos Estados em luta, dia após dia, para resistir às tempestades atuais, caminham aos tropeções de uma campanha ad hoc de administração da crise e de um conjunto de medidas de emergência para outro, sonhando apenas permanecer no poder após a próxima eleição, mas desprovidos de programas ou ambições de longo alcance, que dirá de projetos para uma solução radical dos problemas recorrentes da nação. “Aberto” e cada vez mais indefeso de ambos os lados, o Estado-nação perde sua força, que agora se evapora no espaço global, assim como a sagacidade e a destreza políticas, cada vez mais relegadas à esfera da “vida política” individual e “subsidiadas” a homens e mulheres. O que resta de força e de política a cargo do Estado e de seus órgãos se reduz gradualmente a um volume talvez suficiente para guarnecer pouco mais que uma grande delegacia de polícia. O Estado reduzido dificilmente poderia conseguir ser mais que um Estado da proteção pessoal.

Tendo fugido de uma sociedade aberta compulsoriamente pelas pressões das forças globalizadoras, o poder e a política se afastam cada vez mais. O problema, e a enorme tarefa que provavelmente confrontará o século atual como seu desafio supremo, é unir novamente o poder e a política. A união dos parceiros separados dentro do domicílio do Estado-nação talvez seja a menos promissora das possíveis respostas a esse desafio.

Num planeta negativamente globalizado, todos os principais problemas — os metaproblemas que condicionam o enfrentamento de todos os outros — são globais e, sendo assim, não admitem soluções locais. Não há nem pode haver soluções locais para problemas originados e reforçados globalmente. A união do poder e da política pode ser alcançada, se é que pode, no nível planetário. Como Benjamin R. Barber pungentemente afirma: “Nenhuma criança norte-americana pode se sentir segura em sua cama se as crianças de Karachi ou Bagdá não se sentirem seguras nas suas. Os europeus não desfrutarão por muito tempo de suas liberdades se as pessoas de outras partes do mundo permanecerem excluídas e humilhadas.”19 A democracia e a liberdade não podem mais estar plena e verdadeiramente seguras num único país, ou mesmo num grupo de países; sua defesa num mundo saturado de injustiça e habitado por bilhões de pessoas a quem se negou a dignidade humana vai corromper inevitavelmente os próprios valores que os indivíduos deveriam defender. O futuro da democracia e da liberdade só pode se tornar seguro numa escala planetária — ou talvez nem assim.

O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável. Essa insegurança e essa incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento de impotência: parecemos não estar mais no controle, seja individual, separada ou coletivamente, e, para piorar ainda mais as coisas, faltam-nos as ferramentas que possibilitariam alçar a política a um nível em que o poder já se estabeleceu, capacitando-nos assim a recuperar e reaver o controle sobre as forças que dão forma à condição que compartilhamos, enquanto estabelecem o âmbito de nossas possibilidades e os limites à nossa liberdade de escolha: um controle que agora escapou ou foi arrancado de nossas mãos. O demônio do medo não será exorcizado até encontrarmos (ou, mais precisamente, construirmos) tais ferramentas.”

19. Ver Benjamin R. Barber em conversa com Artur Domoslawski, Gazeta Wyborcza, 24-26 dez 2004, p.19-20.

 

 

“Um dos efeitos mais sinistros da globalização é a desregulamentação das guerras. A maior parte das ações belicosas dos dias de hoje, e das mais cruéis e sangrentas entre elas, são travadas por entidades não-estatais, que não se sujeitam a leis estatais ou quase-estatais, nem às convenções internacionais. São simultaneamente o resultado e as causas auxiliares, porém poderosas, da erosão contínua da soberania do Estado e das permanentes condições de fronteira que prevalecem no espaço global “supraestatal”. Os antagonismos intertribais vêm à tona graças ao enfraquecimento dos braços do Estado; no caso dos “novos Estados”, de braços que nunca tiveram tempo (ou permissão) para criar músculos. Uma vez iniciadas, as hostilidades tornam as incipientes ou arraigadas leis do Estado inaplicáveis e, para todos os fins práticos, nulas e inúteis.

A população geral de um Estado se vê assim num espaço sem lei. A parte dela que resolve e consegue fugir do campo de batalha encontra-se em outro tipo de anarquia, a da fronteira global. Uma vez fora das fronteiras de seu país natal, os fugitivos são, além de tudo, privados do apoio de uma autoridade de Estado reconhecida que possa colocá-los sob sua proteção, fazer valer seus direitos e interceder em seu favor junto a potências estrangeiras. Os refugiados são pessoas sem Estado, mas num novo sentido: sua carência é elevada a um nível inteiramente novo pela inexistência, ou pela presença fantasma, de uma autoridade estatal à qual sua cidadania pudesse referir-se. Eles são, como afirma Michel Agier em seu criterioso estudo sobre refugiados na era da globalização, hors du nomos — fora da lei;8 não desta ou daquela lei vigente neste ou naquele país, mas da lei em si, São degredados e foragidos de um novo tipo, produtos da globalização, a mais completa epítome e encarnação de seu espírito de fronteira. Citando novamente Agier, foram lançados a uma condição de “flutuantes liminares”, e não sabem nem podem saber se esta é transitória ou permanente. Mesmo que permaneçam estacionários por algum tempo, estão numa jornada que nunca se completa, já que seu destino (seja de chegada ou de retorno) continua eternamente incerto, enquanto o lugar que poderiam chamar de “definitivo” permanece para sempre inacessível. Nunca estarão livres de um persistente senso de transitoriedade e indefinição, assim como da natureza provisória de qualquer assentamento.

A sorte dos refugiados palestinos, muitos dos quais nunca experimentaram viver fora dos campos improvisados e montados de forma precária mais de 50 anos atrás, tem sido bem documentada. Quando, porém, a globalização cobra seu tributo, novos campos (menos conhecidos, que não atraem atenção ou foram esquecidos) surgem em profusão em tomo de áreas conflagradas, prefigurando o modelo que, na opinião de Tony Blair, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados deveria tornar obrigatório. Por exemplo, os três campos de Dabaab, cujo número de habitantes é igual ao do resto da província queniana de Garissa, onde foram alocados em 1991-92, não mostram sinais de fechamento iminente, embora mais de uma década depois ainda não apareçam nos mapas do país — foram concebidos, evidentemente, como soluções temporárias, apesar de seu caráter obviamente permanente. O mesmo se aplica aos campos de Ilfo (que começou a funcionar em setembro de 1991), Dagahaley (março de 1992) e Hagadera (junho de 1992).9

Uma vez refugiado, sempre refugiado. As estradas que levam de volta ao paraíso doméstico perdido (ou melhor, já inexistente) foram praticamente fechadas, e todas as saídas do purgatório dos campos conduzem ao inferno... A sucessão de dias vazios dentro do perímetro do campo sem perspectiva pode ser dura de aguentar, mas Deus não permita que os plenipotenciários da humanidade, nomeados ou voluntários, cujo trabalho consiste em manter os refugiados dentro do campo, mas longe da perdição, tirem o plugue da tomada. E, no entanto, eles o fazem, repetidamente, sempre que os poderes constituídos decidem que os exilados não são mais refugiados, já que aparentemente “é seguro voltar” àquela terra natal que há muito tempo deixou de ser seu lar e nada tem que pudesse ser oferecido ou que seja desejado.”

8. Ver Michel Agier, Auxbords dit monde, les réfugiés. Flammarion, 2002, p.55-6.

9. Ibid., p.86.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Sobrados e mucambos (Parte V), de Gilberto Freyre

Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano

Editora: Global

Opinião: ★★★★☆

ISBN: 978-85-260-0835-9

Páginas: 976

Sinopse: Ver Parte I



“Se deles foram se queixando à polícia do Príncipe Regente, como de bailarinos incômodos, ingleses e franceses que não viam com bons olhos nem gelosias árabes capazes de esconder ladrões nem capoeiras peritos em cabeçadas e rabos de arraia, devem ter se arrependido de algumas das queixas. Pois – repita-se – a perseguição sistemática da polícia do Regente aos capoeiras dos rabos de arraia e das cabeçadas é que os perverteu em bailarinos ainda mais incômodos: bailarinos de navalha e de faca de ponta. Bailarinos que rindo, gingando, andando macio, deram para matar brancos – principalmente europeus – rasgando-lhes o ventre a navalha e a faca, quando outrora apenas os espapaçavam no chão com as terríveis cabeçadas, maltratando-os, é certo, e pondo-os fora de combate; mas sem os matar. Como nas lutas de box entre os ingleses.

Em 1821 já era diversa a situação no Rio de Janeiro: os ferimentos e as mortes estavam se tornando numerosos na cidade; e muitas delas praticadas por escravos negros e mulatos. De onde a representação dirigida ao ministro da guerra, a 26 de fevereiro do mesmo ano, pela Comissão Militar, no sentido de desenvolver a polícia ação mais vigorosa contra escravos e negros desabusados, “visto que pela falta de castigos de açoites, unicos que os atemorisa e aterra, se estão perpetrando mortes e ferimentos como tem acontecido ha poucos dias, que se tem feito seis mortes pelos referidos capoeiras e muitos ferimentos de facadas...”. À Comissão Militar parecia faltar “energia” ao então intendente de Polícia. Ou isto ou não estava ele “bem ao alcance das perigosas consequencias que se devem esperar de tratar por meios de brandura aquella qualidade de individuos...”. Pelo que a mesma comissão recomendava a S. A. R., por intermédio do seu ministro da Guerra, que, em vez de prender os escravos desordeiros, como se eles fossem sensíveis à pena de prisão, como os brancos – e dessas prisões resultava “damno a seos senhores” que eram “obrigados a pagar as despezas da cadeia” – a polícia submetesse sempre os pretos apanhados em desordem, ou “com alguma faca” ou “instrumento suspeitoso”, a castigos de açoites que pudessem concorrer para a “emenda dos negros”.670

Desde 8 de dezembro de 1823 que uma portaria de Clemente Ferreira França671 mandava que o brigadeiro-chefe do corpo de polícia da capital do Império fizesse reforçar as patrulhas nos largos e açougues de sorte a evitar o ajuntamento de negros capoeiras. E desde 1821 que um edital – de 26 de novembro – mandava que os açougues e tavernas se fechassem às dez horas da noite,672 a fim de evitar iguais ajuntamentos. Em 1825, outro edital, este do intendente-geral da polícia da Corte do Brasil, Francisco Alberto Teixeira do Aragão, declarava que os escravos poderiam ser apalpados a qualquer hora do dia ou da noite, desde que lhes era proibido, sob pena de açoites, o uso de qualquer arma: “não só o uso de qualquer arma de defeza como trazerem paos”. Era também proibido ao escravo – não só a eles como a todo negro ou homem de cor – estar parado nas esquinas “sem motivos manifestos” e até “dar assobios ou outro qualquer signal”.673 Atingia-se o moleque em algumas das liberdades mais características de sua condição de moleque: a de parar nas esquinas e a de dar assobios, por exemplo.

Entretanto esses negros, esses escravos, esses capoeiras, esses moleques, contidos e até reprimidos nas suas expansões de vigor viril e de combatividade de moços e de adolescentes como se todos os seus exercícios físicos, todos os seus passos de dança, todos os seus cantos em louvor de Ogum, todos os seus assobios fossem crime ou vergonha para a Colônia ou para o Império, é que conteriam as turbulências e reprimiam a revolta de mercenários irlandeses e alemães quando esses europeus armados, soldados prediletos de Pedro I – como eles, europeu – sublevaram-se em 1828. Primeiro – na manhã de 9 de junho – alemães, aquartelados em São Cristóvão, depois de lançarem fogo aos quartéis, precipitaram-se nas ruas como uns demônios ruivos, saqueando tavernas e maltratando quanta gente pacífica e desarmada foram encontrando. Depois, fizeram o mesmo os alemães da Praia Vermelha. Estes, tendo assassinado o major Benedito Teola, que tentara contê-los, saíram em confusão pelas ruas assaltando casas, bebendo e roubando. Dois dias depois, aos alemães procuraram juntar-se os irlandeses aquartelados no Campo de Santana. Antes, porém, que esses novos amotinados saíssem dos quartéis, foram cercados por forças milicianas que lhes cortaram comunicações com as ruas. E quanto aos soldados irlandeses que se achavam de guarda a edifícios ou estabelecimentos públicos, estes, ao tratarem de reunir-se aos seus companheiros sublevados, foram “atacados por pretos denominados capoeiras” que com eles travaram “combates mortíferos”. Pormenoriza o historiador Pereira da Silva que, embora “armados com espingardas” não puderam os irlandeses resistir aos capoeiras; e vencidos por “pedra”, “pau”, e “força de braços” caíram os estrangeiros pelas ruas e praças públicas, feridos grande parte e bastantes sem vida”.674

Se é certo que só com o auxílio de tripulações de navios de guerra ingleses e franceses surtos no porto – marinheiros que foram empregados em guardar os arsenais e estabelecimentos públicos – e de “cidadãos importantes”, capazes de reunir “paisanos” dispostos à luta, pôde o governo subjugar a revolta dos mercenários alemães e irlandeses, trazidos da Europa ou aqui reunidos pelo primeiro imperador para constituírem sua guarda de confiança contra as turbulências tanto dos mestiços ou dos “natos” como dos “portugueses exaltados”,675 é também verdade que, contra muitos dos amotinados agiram, de modo fulminante, “pretos denominados capoeiras” que não eram outros senão os negros mais viris e os moleques mais sacudidos, cansados do rame-rame de carregar palanquins, fardos, pedras, madeira, água, barris de excremento dos brancos. Cansados de servir de bestas de carga, de bois de carroça e de cavalos de carro aos brancos sem que lhes fosse permitido descarregar sua melhor energia de homens e de adolescentes vibrantes em jogos, exercícios físicos, danças, cantos e batuques do seu gosto ou da sua devoção de africanos e de filhos de africanos.

Não, porém, que esses negros e esses pardos fossem por natureza anárquicos ou sanguinários, como ainda hoje acreditam os intérpretes mais superficiais de insurreições como a “dos alfaiates”, no século XVIII e a dos Malês, no século XIX, na Bahia. Ou das insurreições de quilombolas. Ou das revoltas ou motins de gente de cor como os de 1823 no Recife.676 Ou das façanhas de capoeiras aí e no Rio de Janeiro.

O que negros e pardos moços fizeram, explodindo algumas vezes em desordeiros, foi dar alívio a energias normais em homens ou adolescentes vigorosos que a gente dominante nem sempre soube deixar que se exprimissem por meios menos violentos que a fuga para os quilombos, o assassinato de feitores brancos, a insurreição: o batuque, o samba, a capoeiragem, o assobio, o culto de Ogum, a prática da religião de Maomé. A estupidez da repressão é que principalmente perverteu batuques em baixa feitiçaria, o culto de Ogum, em grosseiro arremedo de maçonaria, com sinais e assobios misteriosos, o islamismo, em inimigo de morte da religião dos senhores cristãos das casas-grandes e dos sobrados, a capoeiragem, em atividade criminosa e sanguinária, o samba, em dança imundamente plebeia. É curioso observar-se hoje – largos anos depois dos dias de repressão mais violenta a tais africanismos – que os descendentes dos bailarinos da navalha e da faca como que se vêm sublimado nos bailarinos da bola, isto é, da bola de foot-ball, do tipo dos nossos jogadores mais dionisíacos como o preto Leônidas; os passos do samba se arredondando na dança antes baiana que africana, dançada pela artista Cármen Miranda sob os aplausos de requintadas plateias internacionais; as sobrevivências do culto de Ogum e do culto de Alá dissolvendo-se em práticas marginalmente católico-romanas como a lavagem da igreja de Nosso Senhor do Bonfim – na Bahia, há pouco transferida para uma das igrejas do Rio de Janeiro.”

670 Elísio de Araújo em seu já mais de uma vez citado Estudo histórico sobre a policia da Capital Federal de 1808 a 1831 (Rio de Janeiro, 1898), p. 61. Veja-se também o capítulo XXVIII, do estudo de Émile Allain, Rio de Janeiro, Quelques données sur la capitale et sur l’administration du Brésil, 2ª ed., Paris-Rio de Janeiro, 1886.

671 Manuscrito, Arquivo Público Nacional, cit. por Araújo, op. cit., p. 115. França ordena aí ao comandante da Imperial Guarda da Polícia fazer “reforçar as patrulhas nos largos e praças da cidade, de sorte a evitar o ajuntamento de negros capoeiras...”. Veja-se também a seção “Postura e infração de posturas” do Arquivo Geral da Prefeitura do Distrito Federal, seção que o ilustre historiador Noronha Santos destaca como fonte “do maio apreço” ou “cabedal informativo digno de grande interesse” (“Resenha analítica de livros e documentos do Arquivo Geral da Prefeitura elaborada pelo historiador Noronha Santos”, Rio de Janeiro, 1949, p. 15).

672 Diário do Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1821. Sobre a polícia do Rio de Janeiro nos primeiros anos do Império, veja-se a obra já citada de Carmo Neto, “O intendente Aragão.”

673 Diário do Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1825. Era “depois das dez horas da noite no verão e das nove no inverno, até á alvorada” que ninguém, no Rio de Janeiro dos primeiros anos do Império, estava “isento de ser apalpado e corrido pelos patrulhas da polícia”. Os escravos, porém, poderiam ser apalpados a qualquer hora.

Carmo Neto recorda a observação de van Bolen de que, por essa época, rondavam frequentemente as ruas da cidade do Rio de Janeiro “patrulhas a cavalo e a pé” (op. cit., p. 15).

674 J. M. Pereira da Silva, Segundo período do reinado de D. Pedro I no Brasil, Rio de Janeiro, 1871, p. 287.

675 Pertence ao arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro interessante autógrafo, em alemão, assinado por D. Pedro I e dirigido a seu “caro Schaeffer”, onde se diz: “Muito lhe agradeço a boa gente que tem mandado para soldados. A imperatriz já lhe mandou, da minha parte, encommendar mais 800 homens; agora eu lhe peço que, em logar de colonos casados, mante mais 3.000 solteiros, também para soldados, além dos 800. O ministro dos Negócios Estrangeiros lhe mandou dizer que não mandasse mais, mas eu quero que mande os que por esta lhe encommendo, e faça de conta que não recebeu ordem para não mandar. Mande, mande e mande, pois lhe ordenna quem o há de desculpar e premiar pois é – seu Imperador. Boa Vista, em 13 de junho de 1824.” Desde 1823, recorda Carmo Neto, Jorge Antônio de Schaeffer, “a serviço do Exército brasileiro”, fora encarregado pelo governo do Brasil de contratar colonos na Alemanha e, ao mesmo tempo, engajar aí “soldados estrangeiros para servirem em nossas fileiras, como se vê da portaria de 4 de dezembro de 1824 (Coleção Nabuco)” (op. cit., p. 13). Com esses estrangeiros contratados, formaram-se os três batalhões cuja revolta foi sufocada com o auxílio de capoeiras: “o de irlandeses aquartelado no campo de Santana e os dois de alemães, aquartelados um no campo de São Cristóvão e outro na praia Vermelha”.

676 Sobre os motins do Recife em 1823 – os menos conhecidos dos movimentos de rebeldia da gente de cor no Brasil patriarcal – veja-se Alfredo de Carvalho, Estudos pernambucanos, Recife, 1907.

 

 

É do maior interesse para a compreensão do período de transição que foi, nas principais áreas do nosso País, a primeira metade do século XIX, destacar-se que várias das modificações que sofreram então paisagens e instituições ligam-se direta ou indiretamente à cessação do tráfico legal de escravos, cujo volume o clandestino nem sempre conseguiu suprir; nem pôde manter. Os capitais foram tomando, assim, outros rumos. Deixando de concentrar-se no comércio de escravos, tornaram-se disponíveis para os melhoramentos mecânicos, para as compras de máquinas ou simplesmente de cavalos e de vacas de leite, superiores ou de raça, para a construção de sobrados de luxo. Por longos anos, vinham afluindo os capitais à praça, sem terem aí emprego suficiente. Eram limitadas as transações. Acanhado o giro do dinheiro. As maiores fortunas móveis do Império em grande parte se achavam em mãos de traficantes de escravos; e estes só as aplicavam com escravos. Com a cessação do tráfico é que o emprego dos mesmos capitais reverteu para os melhoramentos materiais do País – especialmente na Corte.743 Uns, ativando as construções urbanas, dando-lhes o que os higienistas da época consideravam “melhores e mais salutares condições”; outros convergindo para empresas de viação urbana, criação de gado de leite que substituísse as já escassas cabras-gente, mecanização de serviços públicos ou particulares até então movidos por braço escravo.

É certo que a adaptação de capitais, concentrados em escravos, a máquinas, fábricas, animais de tração e de leite e prédios urbanos, não se fez docemente mas através de crises profundas744 que em áreas como a do Rio de Janeiro, a da Bahia, a de Pernambuco, a do Maranhão afetaram a sociedade em costumes ou estilos de vida; e não apenas a economia brasileira. É que a cessação do tráfico de escravos africanos foi como que o golpe de morte – mas não ainda o de misericórdia – numa forma, já então arcaica, de economia e de sociedade, a um tempo feudalista e capitalista; e esse golpe doeu não só nos capitalistas, negociantes de “folegos vivos”, e nos senhores, ainda feudais, de terras (senhores para quem esses fôlegos vivos eram a própria vida) como na população das próprias cidades, em grande parte dependente de condições de existência criadas pelo mesmo sistema, por longo tempo moribundo: lento em deixar de existir e de influir sobre o ambiente ou sobre o meio. (...)

Esse comércio se fazia principalmente com a Corte, do mesmo modo que a “forte companhia” da província de Minas visava abastecer de animais de corte, de leite e de tração as populações da área metropolitana e das áreas vizinhas à Corte, no beneficiamento das quais foi se esmerando o capitalismo outrora especializado na importação de escravos da África para o Brasil, e, por conseguinte, no beneficiamento das áreas mais feudalmente agrárias do País. Vinha-se desenvolvendo, assim, uma revolução ecológica, e não apenas tecnológica, com a transferência de capitais, de escravos para animais e, até certo ponto, para máquinas, ao lado do deslocamento de prestígio político do Norte açucareiro, e necessitado de escravos para a sua economia, ainda predominantemente açucareira e ortodoxamente patriarcal, para o Sul cafeeiro, e menos patriarcal que comercial, em cuja economia agrária, seria mais fácil a substituição do escravo pelo colono europeu e, na urbana, a substituição do negro pela máquina também europeia.

Ao golpe de morte na escravidão que foi a cessação do tráfico regular, sucedeu-se outro: a epidemia de cólera-morbo, ou cólera asiática, que devastou como uma praga do Velho Testamento senzalas de casas-grandes de engenhos e de fazendas persistentemente patriarcais e até feudais em sua organização social. Não só senzalas: também mucambos de pretos e de pardos nos arredores dos sobrados a ponto de parecer a epidemia a alguns deles, pretos e pardos, arte diabólica de brancos para acabar com a gente de cor.

Mas por uma como compensação biológica e não apenas sociológica, quase ao mesmo tempo em que a cólera asiática devastava principalmente a população africana e escrava das senzalas e dos mucambos, a febre amarela aparecia, para especializar-se em matar europeu ou branco puro, fino, vigoroso, entre os dezesseis e os trinta anos.748 Principalmente branco de sobrado. Foi como se a febre amarela tivesse tomado a si a tarefa de retardar, no Brasil, a vitória sobre o patriarcalismo rústico, encarnado nos homens de mais de sessenta anos – raramente atingidos pelo mal – do capitalismo ou do tecnicismo burguês representado principalmente por estrangeiros ainda jovens: por ingleses, franceses, portugueses de sobrado ou de loja; e por um ou outro Mauá brasileiro. Ou o triunfo, porventura menos difícil, do liberalismo dos bacharéis e dos doutores de vinte e tantos, trinta anos, sobre a rotina conservadora do maior número dos senhores de mais de sessenta.

Há até quem atribua à febre amarela a função patriótica de ter guardado o Império da cobiça europeia ou britânica. E na verdade parece ter ela impedido a desnacionalização do Brasil sob a influência de uma transferência, demasiadamente rápida, de domínio econômico, das mãos dos senhores de escravos e dos traficantes de negros para as dos senhores de bancos e dos traficantes de máquinas de ferro ou a vapor. Das mãos dos velhos das casas-grandes para as dos senhores moços dos sobrados.

O certo, porém, é que, sob o estímulo dos dois flagelos, parecem ter melhorado não só as condições de higiene e de vida nas principais cidades do Império como nas senzalas, nas casas-grandes, nas fazendas do interior alcançadas tanto pelo mal asiático como pela “febre de gringos”, isto é, de estrangeiros, de ingleses, de franceses, de alemães, de suíços, de italianos. À febre amarela pode-se, na verdade, atribuir uma série de aperfeiçoamentos técnicos ou mecânicos na vida das cidades brasileiras. Entre eles, a construção de cemitérios públicos e a generalização do hábito de residência nobre ou burguesa nos subúrbios, ou nas ruas afastadas do centro, deixando-se os sobrados dos centros urbanos para funções exclusivamente comerciais ou burocráticas. Ou para bordéis e cortiços, para repartições públicas e armazéns.”

743 O fato foi surpreendido em alguns dos seus efeitos imediatos por observadores da época, um deles Charles Reybaud que escreveu no seu Le Brésil (Paris, 1856) : “La suppression de la traite a laissé au Brésil bien des capitaux inactifs, indigènes ou étrangers, mais habitués à chercher un emploi lucratif dans les transactions des grandes places brésiliennes. C’est cette abondance de valeurs disponibles, combinée avec des développements de l’esprit d’association, qui explique la facilité avec laquelle se sont montées à Rio les plus importantes affaires. On a vu tour à tour la Banque du Brésil, l’entreprise des services à vapeur sur l’Amazone, celle du chemin de fer de don Pedro II et bon nombre d’autres, trouver sur-le-champ, par des souscriptions empressées, dix fois le capital dont ils avaient besoin. Il y avait certainement de l’agiotage dans cette ardeur à souscrire, et la capitale du Brésil n’est pas plus affranchie que Paris et Londres de cette spéculation malséante, levier vereux et nécessaire du crédit public et privé” (p. 230-231).

744 Vítor Viana, em seu estudo O Banco do Brasil – Sua formação, seu engrandecimento, sua missão nacional (Rio de Janeiro, 1926), refere-se às crises de 51, 57, 64 como “crises de crescimento” (p. 362). E transcreve do relatório de 1859: “... a cessação do tráfego deslocou avultados capitais, até então empregados nas feitorias das costas da África e no aparelhamento das expedições”, isto é, das expedições para a captura de negros. Esse dinheiro, refluindo para o Brasil, “mudou completamente a face de todas as cousas na agricultura, no comércio e na indústria” (p. 363). O recente estudo do professor Afonso Arinos de Melo Franco, História do Banco do Brasil (São Paulo, 1947), limitando-se à primeira fase da história do Banco (1808-1835), não alcança as crises que nos parecem marcar transições de tipos de economia no Império.

748 Vejam-se, sobre o assunto, Memória histórica das epidemias de febre amarela e cólera-morbo que têm reinado no Brasil, pelo Dr. Pereira Rego (barão de Lavradio), Rio de Janeiro, 1873, o trabalho anterior do mesmo José Pereira Rego, História e descrição da febre amarela no Rio de Janeiro, em 1850, Rio de Janeiro, 1851, e sobre a receptividade mórbida à febre amarela de indivíduos ou populações segundo áreas, idades, raças, tipos de habitação etc., o relatório do médico José Domingos Freire, anexo ao Relatório do ministro do Império, Rio de Janeiro, 1885. Vejam-se também Du climat et des maladies du Brésil, por J. F. X. Sigaud, Paris, 1844, Considerações gerais sobre a topografia físico-médica da cidade do Rio de Janeiro, por Francisco Lopes de Oliveira Araújo, Rio de Janeiro, 1852, Observações sobre a febre amarela, por Roberto Lallemant, Rio de Janeiro, 1951, e Estudo clínico sobre as febres do Rio de Janeiro, por João Torres Homem, Rio de Janeiro, 1856.

 

 

A ascensão do bacharel ou doutor – mulato ou não – afrancesado trouxe para a vida brasileira muita fuga da realidade através de leis quase freudianas nas suas raízes ou nos seus verdadeiros motivos. Leis copiadas das francesas e das inglesas e em oposição às portuguesas: revolta de filhos contra pais. Mas, por outro lado, afrancesados como Arruda Câmara é que deram o grito de alarme contra certos artificialismos que comprometiam a obra patriarcal de integração do Brasil, como aqueles exagerados sentimentos de nobreza encarnados por Antônio Carlos.755

Quando Melo Morais aparece, no meado do século XIX, recordando cheio de saudade os velhos do seu tempo de moço, o prestígio que tinham, o bom senso com que administravam a então colônia, é para lamentar, entre outros horrores dos novos tempos, o predomínio dos bacharéis afrancesados; para contrastar-lhes a inexperiência de puros letrados com a sabedoria prática dos velhos administradores. Destes se pode dizer, na verdade, que estavam para os filhos e netos, formados em Direito e em Filosofia, ou em Matemática e Medicina, na Europa, ou sob influência francesa ou inglesa, como muito curandeiro da terra para os rapazes formados em Medicina em Montpellier e em Paris: superiores aos doutos – os curandeiros – pelo seu traquejo e pela sua prática; pela sua sabedoria de grandes intuitivos que lidavam face a face com os males e as doenças de meio tão diverso do europeu, que conheciam pelo nome e às vezes pela experiência do próprio corpo as resinas, as ervas e os venenos indígenas ou trazidos da África pelos negros. Na mesma relação de curandeiros para médicos, estiveram, entre nós, os guerrilheiros para os guerreiros. A guerra contra a Holanda, por exemplo, foi ganha principalmente pelos guerrilheiros da terra contra os guerreiros da Europa. Por homens de conhecimentos concretos da terra em que se batalhava contra guerreiros, a eles vastamente superiores, na arte ou na ciência abstrata das batalhas.

O professor Gilberto Amado salienta que à política e à administração do Império, os homens mais úteis não foram os mais bem preparados com “sua fácil e inexaurível erudição à margem dos fatos e das coisas”. E num dos seus mais lúcidos ensaios observa desses “mais preparados” que eram homens de “erudição abstrata”, “preocupados mais com o espírito que com o fundo dos problemas”, fazendo discursos cheios de “citações de estadistas franceses e ingleses” sem, entretanto, se darem “ao pequeno trabalho de fazer um estudo ligeiro das condições de raça, de meio, das contingências particulares” do Império. Os estadistas mais realizadores foram, muitas vezes, homens de feitio oposto ao dos bacharéis, mais cultos: “os menos preparados”. Isto sem exceção, desde Paraná a Cotegipe.756

Se houve doutores e bacharéis formados na Europa do fim do século XVIII que reuniram, como Arruda Câmara, a teoria europeia a qualidades de curandeiros dos nossos males sociais por processos brasileiros, muitos se exageraram na doutrina. E foram uns românticos ou então uns livrescos, imaginando que dirigiam país castiçamente europeu: e não uma população mulata, mestiça, plural.”

755 Antônio Carlos Ribeiro de Andrada parece ter pertencido ao número daqueles brasileiros que escandalizaram um aristocrata francês de sentimentos já liberais como o conde de Suzannet pelos seus orgulhos de família (op. cit., p. 411).

756 Gilberto Amado, Grão de areia, Rio de Janeiro, 1919, p. 244-245. Veja-se também A Chave de Salomão e outros escritos, Rio de Janeiro, 1947, p. 176-180.

 

 

O conde de Valadares, em Minas, organizara ainda na era colonial regimentos de homens de cor com oficiais mulatos e pretos.761 Um desprestígio para a melhor aristocracia da terra. Aliás, nos tempos coloniais, chegara a haver sargento-mor e até capitão-mor mulato; mulato escuro, até, como o que Koster conheceu em Pernambuco. Mas esses poucos mulatos que chegaram a exercer, nos tempos coloniais, postos de senhores, quando aristocratizados em capitães-mores, tornavam-se oficialmente brancos, tendo atingido a posição de mando por alguma qualidade ou circunstância excepcional. Talvez ato de heroísmo, ação brava contra rebeldes. Talvez grande fortuna herdada de algum padrinho vigário. Quando o inglês perguntou, em Pernambuco, se o tal capitão-mor era mulato – o que, aliás, saltava aos olhos – em vez de lhe responderem que sim, perguntaram-lhe “se era possível um capitão-mor ser mulato”.762 (...)

Verificaram-se casos semelhantes nos Estados Unidos. Em certo velho burgo do Estado de... nos foi um dia apontado – isto já há largos anos – indivíduo ilustre admitido e até cortejado na sociedade branca mais fina e mais exclusivista do lugar, e de quem entretanto se sabia ter ascendente africano, embora remoto. Numa terra em que a simples suspeita de tal ascendência basta para determinar o mais cruel ostracismo social, o caso nos pareceu espantoso. Esclareceram-nos, porém, que o indivíduo em questão tivera outro ascendente – ou seria o mesmo negroide? – entre os heróis mais gloriosos da guerra da Independência. O que lhe arianizara a raça e lhe aristocratizara o sangue.”

761 Já salientamos, em nota a capítulo anterior, que variou a política portuguesa no Brasil colonial quanto ao aproveitamento de negros e mulatos como oficiais de milícias. Menos, porém, ao que parece, por preconceito de raça ou de cor do que de região: a região colonial em relação com a metropolitana, cujos filhos pretendiam monopolizar na colônia os postos de direção, deixando aos cabras que – de modo geral – eram todos os brasileiros, os cargos secundários e, principalmente, os encargos penosos, da administração.

762 É bem conhecida a observação de Koster no norte do Brasil quanto a certo capitão-mor, homem evidentemente de sangue africano que era, entretanto, considerado branco, por força do cargo. Também “brancos”, por força dos cargos que ocuparam no Império e de títulos de nobreza que lhes concedeu o Imperador, ficaram vários brasileiros evidentemente negroides, alguns deles filhos de mestiças célebres como Maria-você-me-mata, muito malvistas pelas iaiás mais puritanas dos sobrados. (...)

 

 

“A simpatia à brasileira – o homem simpático de que tanto se fala entre nós, o homem “feio, sim, mas simpático” e até “ruim ou safado, é verdade, mas muito simpático”; o “homem cordial” a que se referem os Srs. Ribeiro Couto e Sérgio Buarque de Holanda833 – essa simpatia e essa cordialidade, transbordam principalmente do mulato. Não tanto do retraído e pálido como do cor-de-rosa, do marrom, do alaranjado. Ninguém como eles é tão amável; nem tem um riso tão bom; uma maneira mais cordial de oferecer ao estranho a clássica xicrinha de café; a casa; os préstimos. Nem modo mais carinhoso de abraçar e de transformar esse rito como já dissemos orientalmente apolíneo de amizade entre homens em expansão caracteristicamente brasileira, dionisiacamente mulata, de cordialidade. O próprio conde de Gobineau que todo o tempo se sentiu contrafeito ou mal entre os súditos de Pedro II, vendo em todos uns decadentes por efeito da miscigenação, reconheceu, no brasileiro, o supremo homem cordial: “très poli, très accueillant, très aimable”. Evidentemente, o brasileiro834 que tem sua pinta de sangue africano ou alguma coisa de africano na formação de sua pessoa; não o branco ou o “europeu” puro, às vezes cheio de reservas; nem o caboclo, de ordinário, desconfiado e que ri pouco.

Essa simpatia do brasileiro – evidentemente maior no mulato “em quem a linfa ariana” – escreve o professor Gilberto Amado – “não dissolveu ainda a abundância animal do temperamento negro” – não nos parece ter origem principalmente étnica.835 Não nos parece que se derive da pura “alegria carnal das primeiras africanas que riam com os seus belos dentes e se espanejavam contentes na doçura das novas senzalas onde os senhores iam procurá-las com o seu amor.” “O riso abundante”, que o professor Amado salienta no mulato brasileiro, cremos que é antes um desenvolvimento social; e estamos de inteiro acordo com o eminente ensaísta quando escreve dos mulatos risonhos: “o que lhes resta do hábito de servir, adquirido na longa passividade da escravidão, dá-lhes um caráter prestativo e obsequioso”, certa “mole doçura que opõem aos obstáculos”. Naquele “riso abundante” haverá extroversão africana; talvez maior plasticidade de músculos da face do que no branco. Mas o que ele exprime parece que é principalmente um desenvolvimento ou uma especialização social. Terá se desenvolvido principalmente – como já nos aventuramos a sugerir – dentro das condições de ascensão social do mulato: condições de ascensão através da vida livre e não apenas nas senzalas e nos haréns dos engenhos; mas tendo por pontos de partida essas senzalas e esses haréns.

O mulato formado, em competição com o advogado branco, com o médico, com o político, procurou vencer o competidor, agradando, mais do que eles, aos clientes, ao público, ao eleitorado, ao “Povo”; e em seu auxílio moveram-se, sem dúvida mais facilmente do que no branco, os músculos do rosto negroide. Seu riso foi não só um dos elementos, como um dos instrumentos mais poderosos de ascensão profissional, política, econômica; uma das expressões mais características de sua plasticidade, na transição do estado servil para o de mando ou domínio ou, pelo menos, de igualdade com o dominador branco, outrora sozinho, único. Na passagem não só de uma raça para a outra como de uma classe para outra. (...)

Ao mesmo tempo que fácil no riso – um riso, não já servil, como o do preto, mas quando muito, obsequioso e, sobretudo, criador de intimidade – tornou-se o mulato brasileiro, quando extrovertido, como Nilo Peçanha, transbordante no uso do diminutivo – outro criador de intimidade. O “desejo de estabelecer intimidade”, que o ensaísta Sérgio Buarque de Holanda considera tão característico do brasileiro, e ao qual associa aquele pendor, tão nosso, para o emprego dos diminutivos – que serve, diz ele, para “familiarizar-nos com os objetos”.836

Podemos acrescentar que serve principalmente para familiarizar-nos com as pessoas – principalmente com as pessoas socialmente mais importantes: “sinhozinho”, “doutorzinho”, “capitãozinho”, “padrinho”, “fradinho”, “ioiozinho”, “seu Pedrinho”, “Zezinho”, “Machadinho”, “Sousinha”, “Goizinho”, “Manezinho”, “o Pequenininho”, “o Velhinho”, o “gordinho”, “o Amarelinho”, “o Branquinho”. E esse desejo de intimidade com as pessoas nos parece vir, não só de condições comuns a todo povo ainda novo, para quem o contato humano tende a reduzir-se à maior pureza de expressão, como, particularmente, de condições peculiares ao período de rápida ascensão de um grupo numeroso, da população – o grupo mulato – ansioso de encurtar, pelos meios mais doces, a distância social entre ele e o grupo dominante.

No uso brasileiro de diminutivo, uso um tanto dengoso, ninguém excede ao mulato. Ele foi pelo menos quem deu mais força e nitidez a esse nosso pendor; quem mais o enriqueceu de tendências e de significados sociais particularmente brasileiros. Para os seus interesses, para as suas dificuldades de indivíduo em transição de uma classe para outra, quase de uma raça para outra, o diminutivo, adoçando as palavras, representava a maneira de ser ainda respeitoso, sendo já íntimo, dos antigos senhores e também dos assuntos, outrora distantes e nos quais só os brancos tocavam.”

833 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1947, p. 213.

834 G. Readers, op. cit.

835 Gilberto Amado, Grão de areia, cit., p. 136-137.

836 Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 217.

 

 

Mas as tradições religiosas, como outras formas de cultura, ou de culturas negras, para cá transportadas, junto com a sombra das próprias árvores sagradas, com o cheiro das próprias plantas místicas – a maconha ou a diamba, por exemplo – é que vêm resistindo mais profundamente, no Brasil, à desafricanização. Muito mais que o sangue, a cor e a forma dos homens. A Europa não as vencerá. A interpenetração é que lhes dará formas novas, através de novas combinações dos seus valores com os valores europeus e indígenas.

O Brasil parece que nunca será, como a Argentina, país quase europeu; nem como o México, ou o Paraguai, quase ameríndio. A substância da cultura africana permanecerá em nós através de toda a nossa formação e consolidação em nação. (...)

O mulato nem sempre será, como os Machado de Assis – sofisticado à inglesa – ou como os Cotegipe, os Montezuma, os Gonçalves Dias, os D. Silvério, os D. Luís de Brito, os D. José Pereira Alves, o cúmplice do branco contra o preto. Também o cúmplice do negro contra o branco.”

 

 

O catolicismo, concordamos ter sido elemento poderoso de integração brasileira; mas um catolicismo que, ao contato – desde as Espanhas – com as formas africanas de religião, como que se amorenou e se amulatou, os santos adquirindo dos homens da terra uma cor mais quente ou mais de carne do que a europeia. Adaptou-se assim às nossas condições de vida tropical e de povo de formação híbrida. De modo que as portas de vidro dos santuários se abriram, no Brasil, se escancararam mesmo, para deixar entrar orixás de cajá disfarçados em S. S. Cosme e Damião; São Beneditos pretíssimos, Santas Ifigênias retintas, Nossas Senhoras do Rosário fortemente morenas. Santos de cor que tomaram lugar entre santo-antônios cor-de-rosa e querubinzinhos louros, ruivos, em uma confraternização que nem a dos homens. Os santos e os anjos, tradicionalmente louros, foram aqui obrigados a imitar os homens – nem todos brancos, alguns pretos, muitos mulatos – tornando-se, eles também, parentes de pretos, de pardos e mulatos. Ou amulatando-se, amorenando-se. Até Nossa Senhora amulatou-se, engordou e criou peitos de mãe-preta nas mãos dos nossos santeiros. E do próprio Cristo a imagem que mais se popularizou no Brasil foi a do judeu palidamente moreno, o cabelo e a barba pretos, ou então castanhos; e não a do Nosso Senhor ruivo, que se supõe ser o histórico ou o ortodoxo. É possível que qualquer insistência da parte dos padres em impor à gente do povo santos todos ortodoxamente louros ou ruivos tivesse resultado em desprestígio para o catolicismo, formando-se, talvez, em volta dos altares e dos santos, o mesmo ambiente de distância e de indiferença que foi crescendo em torno do trono e dos imperadores e regentes louros, a tal ponto de poder dizer-se – repita-se – com muito exagero, mas não sem certo fundo de verdade, que o primeiro Imperador fora destronado por não ser nato, o segundo, por não ser mulato.

Para Azevedo Amaral, os heróis autênticos para a gente do povo, no Brasil, os que “se fixam como ídolos na consciência popular” são “os que exprimem nas suas atitudes e nos seus gestos os traços mais fortemente antieuropeus do psiquismo brasileiro”.840 Os traços negroides e caboclos. E contrasta a indiferença pela figura de branco de Caxias com o entusiasmo pelos traços caboclos de Floriano.

Talvez exagere o arguto publicista. Nada, porém, mais natural que essa preferência pelos heróis em cujas figuras a massa encontre o máximo de si mesma. Seu nariz, sua boca, seus olhos, seus vícios, seus gestos, seu riso. Há mesmo aí uma das formas mais poderosas de integração vencendo a diferenciação: o herói, o santo, o gênio se diferencia pelo excepcional da coragem, da santidade, da inteligência; a massa, porém, o reabsorve pelo muito ou pelo pouco que encontra nele de si mesma. Afinal, não existe herói, nem gênio, nem mesmo santo, que não tenha retirado da massa alguma coisa de sua grandeza ou de sua virtude; que não guarde traços da massa em sua superioridade de pessoa excepcional. Alguns chegam exageradamente a considerar o homem de gênio um ladrão: do tesouro que o povo juntou e ele só fez revelar. A riqueza transbordou nele, vinda de outros. De qualquer jeito, a massa tende a recuperar o que o herói ou o indivíduo de gênio de certo modo lhe usurpa, exagerando os traços de semelhança e os pontos de contato entre os dois, massa e herói: os traços caboclos de Floriano ou de Carlos Gomes como os negroides de Montezuma, de Torres Homem, de Rebouças, de José do Patrocínio. Há no culto dos heróis um pouco de agrado de gato – o clássico agrado do gato ao homem: parecendo estar fazendo festa à perna do dono, o gato afaga volutuosamente o próprio pelo. Assim a massa negroide ou cabocla quando encontra herói ou santo de cabelo de índio ou de barba encarapinhada regozija-se nele mais do que num herói louro; é um meio de afagar os próprios pelos nos do herói, nos do gênio, nos do santo.”

840 Azevedo Amaral, em O Brasil na crise atual (Rio de Janeiro, 1935, p. 253).

 

 

Reciprocidade entre culturas que se tem feito acompanhar de intensa mobilidade social – entre classes e entre regiões. Mobilidade vertical e mobilidade horizontal. Talvez em nenhum país da extensão do nosso, o indivíduo do extremo Norte – do Pará, digamos – se sinta tão à vontade no extremo Sul e encontre, conforme seu temperamento mais do que conforme sua origem étnica, tantas facilidades de ascensão social e política. É o caso de centenas de bacharéis cearenses, paraenses, sergipanos, baianos, pernambucanos – vários deles negroides ou caboclos – que têm feito carreira no Rio Grande, no Paraná, em São Paulo e até governado esses Estados e os representado no Parlamento ou no Congresso Nacional. Talvez em nenhum outro país seja possível ascensão social mais rápida de uma classe a outra: do mucambo ao sobrado. De uma raça a outra: de negro a “branco” ou a “moreno” ou “caboclo”. De uma região a outra: de cearense a paulista. Juliano Moreira sabe-se que era filho de negra de tabuleiro. Luiz Gama, de simples escrava. O negro Rebouças, conta-se que acabou dançando quadrilha nos bailes da Corte com a loura princesa Isabel. (...)

Se é certo que somos móveis nos dois sentidos – no horizontal e no vertical – é que não são tão rígidas as configurações psicológicas de raça e de classe no nosso País. O pernambucano julga encontrar mais afinidades com o rio-grandense-do-sul, ou então com o paulista, do que com o baiano, seu vizinho. E não deixa de ter suas razões. O pernambucano, como o gaúcho, e ao contrário do baiano, é amigo da luta e antes rusticamente cavalheiresco do que maciamente urbano. Como o paulista, seco e calado, e não como o baiano, ou o carioca ou o cearense, fácil de acamaradar-se com estranhos. Rígida a psicologia de raça que Azevedo Amaral atribui importância tão grande em nossa formação pretendendo explicar por ela as divergências psicológicas mais profundas, entre os vários grupos de brasileiros, conforme a parcela desta ou daquela raça que predomina em cada um; rígida a psicologia de raça, como esclarecem aquelas evidentes afinidades do pernambucano com o rio-grandense-do-sul, quando absoluta a repercussão da raça sobre o comportamento do homem, as afinidades do pernambucano deveriam ser todas ou quase todas com o baiano do recôncavo e não com o gaúcho espanholado do extremo Sul ou com o paulista? É que talvez as afinidades venham antes de pontos de semelhança na formação social dos três: do pernambucano e do rio-grandense-do-sul e do paulista. Formação menos volutuosa e menos descansada que a do baiano; mais guerreira e mais independente da Corte ou da metrópole; mais avivada pela responsabilidade de estarem sempre defendendo a terra, o Brasil, a América portuguesa com o próprio esforço e o próprio sangue. Através dessa formação, teriam se desenvolvido nos três grupos tradições de luta, de independência, de caudilhismo, de separatismo e, ao mesmo tempo, de liberalismo. Apontam-se hoje verdadeiros traços de união entre as revoluções pernambucanas e as rio-grandenses-do-sul, nos princípios do século XIX. Entre os dois separatismos, os dois republicanismos – o do Norte e o do Sul.844

Pelo menos no caso da afinidade, vamos provisoriamente dizer psicológica, de um grupo de nortistas de composição étnica quase igual à dos baianos, com sulistas de formação étnica predominantemente europeia, pelo menos quase isenta de sangue africano quando comparada com a pernambucana ou a baiana – o fator raça empalidece sob a atuação, evidentemente mais poderosa, de semelhanças de formação histórica. Ou de experiência social.

Já não se dá tanto crédito, como outrora, à fácil psicologia de raça que por tanto tempo consistiu em associar, de modo absoluto, à raça do indivíduo ou da nação ou região, qualidades ou defeitos. Fácil psicologia, segundo a qual o homem mediterrâneo seria sempre, por dura determinação de raça, volátil, apaixonado, instável, imaginoso, com muita queda para as artes plásticas e gráficas, mas sem a pertinácia dos nórdicos, nem a sua coragem, o seu amor de independência, a sua fleuma, a sua capacidade de direção. De positivo, ou através de meios técnicos de mensuração e comparação, pouco se sabe ainda das diferenças mentais e de temperamento entre raças; e menos ainda sobre essas diferenças, em termos claros de superioridade e de inferioridade. As superioridades e inferioridades de raça se acham consagradas apenas, umas pelo bom senso popular, outras só pela meia-ciência, sempre tão enfática, dos psicólogos de segunda e dos sociólogos de terceira ordem.”

844 O historiador Manuel Duarte, em Província e nação (Rio de Janeiro, 1949), mostra que os movimentos revolucionários no Sul e no Norte do Império, durante os primeiros anos da Independência, nem sempre se processaram independentemente uns dos outros.